MARCUS VINICIUS QUIROGA
Poeta, contista, crítico e ensaísta, doutor em Literatura Brasileira; membro do Pen Clube; ex-colaborador do suplemento Idéias e dos jornais Panorama, Poesia Viva e RIOLETRAS.
Livros publicados: Campo de trigo maduro (prêmio Biblioteca Nacional); Manual de instruções para cegos (prêmio Cidade de Juiz de fora – referência especial); Modus Vivendi (prêmio Fábrica de Livros); O cinematógrafo (prêmio UBE-SP/Editora Scortecci); Vida, a respeito de (prêmio Livraria Asabeça-Editora Scortecci); Passaporte para o país das palavras (prêmio Fábrica de Livros – hours concours e Afonso Felix de Sousa da UBE-RJ); O xadrez e as palavras (prêmio Paulo Mendes Campos da UBE-RJ e Jabuti da CBL), língua e os desertos ou Para ler Graciliano Ramos (prêmio cidade de Recife – menção honrosa e Paulo Mendes Campos da UBE-RJ – menção honrosa).
ARQUITETURA E ASAS
Quem planeja, desenha limiares,
não superfícies fechadas, paredes
não toldos, telhas, tetos, mas áreas
que se soltam das linhas das maquetes
No ofício de ver o ainda invisível,
argamassa desejos com pó de asa,
porque dentro de toda pedra vive
o avesso da pedra, de nome audácia
Quem habita, joga no espaço uma âncora,
sente o peso do porão e fantasmas,
entra em contato com o que havia antes,
que o tempo é também uma espécie de casca
Logo quem habita uma casa, habita
os dias que se abrem em quartos, salas
com janelas de fundos, cuja vista
é paisagem interna, temporária
Quem planeja, desenha perspectivas,
não supõe o inesperado despejo,
interdito de muros, cerca viva,
separação sem recurso ou apelo,
traça no papel a vida viável,
o chão que nasce através dos passos,
com arquitetura que se sabe ave
e não se prende às regras da sintaxe
Quem as habita, habita limiares
como se para além da régua e compasso
houvesse a morada solta nos ares
dentro de insuspeitos tempos e espaços
Quem do concreto um dia se desgarra
faz casas só de sonhos e presságios
(De Vida, a respeito de)
QUIROGA, Marcus Vinicius. O cinematógrafo. São Paulo: Scortecci, 2006. ISBN 85-366-0664-9 “Vencedor do I Prêmio de Literatura UBE/Scortecci 2005.” “ Marcus Vinicius Quiroga “ Ex. bibl. Antonio Miranda
PERPETUUM MÓBILE DE MAGRITTE
olhar é um exercício de peso
requer músculos para abstrair
e manter o objeto em equilíbrio
o reflexo torna-se o espelho
e move-se ao redor de si mesmo
mecânico, preciso, presto
a ilusão deforma a figura
em jogo de sombra e geometria:
engano à primeira vista
com o tempo vê-se o truque
mas ele faz parte do quadro
como pergunta que, se pintada,
propõe pensar outros ângulos
desfazer o até então familiar
e lugar-comum fora de lugar
recupera o espanto
a efemeridade perpétua
do homem preso na tela
o rosto se movimenta, círculo
de observações da mesma cena:
nenhum objeto é idêntico
o que é magritte ou chirico
também não se sabe, se lado a lado
fingem afinidades e correlatos
em um mundo que se desloca
permanentemente e sem propósito
estranho, quanto mais próximo,
e, se aos olhos surpresa joga
em móvel exercício de peso,
busca a visão sem excesso, seca
(De O cinematógrafo)
QUIROGA, Marcus Vinicius. Manual de instruções para cegos. Rio de Janeiro: 7Letras; Juiz de Fora, MG: FUNALFA, 2004. 58 p. 12X19 cm. ISBN 85-7577-118-3 Capa: Ligia Lacerda. “ Marcus Vinicius Quiroga “ Ex. bibl. Antonio Miranda
NAVEGAÇÃO À DERIVA
quem navega à deriva
sabe que há vida além dos mares nos mapas
além das bússolas, astrolábios, diários de bordo
além das lendas dos monstros marinhos, dos mitos
quem navega à deriva
acredita que há nos mares miragens, portos
inesperados, ilhas flutuantes, botes e salva-vidas
água potável, aves voando sobre terra, vertigem
quem navega à deriva
aprende que há mares dentro do mar à vista
profundidade secreta, origem do mundo, poesia
escrita cifrada à espera de quem lhe dê sentido
quem navega à deriva
se perde da costa, do farol na torre, dos olhares
atentos, dos radares, das cartas de navegação
imigra para mares de imprevista dicção
(De Manual de instruções para cegos)
QUIROGA, Marcus Vinicius. O Xadrez e as palavras. Rio de Janeiro: RTC Edições e Publicações, 2007. 99 p. (Coleção Letras do Rio, vol. I) 14 x21 cm. Diagramação e capa: Marcia Leite. “Prêmio Paulo Mendes Campos” “ Marcus Vinicius Quiroga “ Ex. bibl. Antonio Miranda
COMPOSIÇÃO EM PRETO E BRANCO
fosse a pintura recomposta
com tonalidades preta e branca
para que habitassem, mesmo opostas,
o espaço da tela
fossem as figuras ovaladas,
como as fez um dia mestre Grego
nem tão santas, nem tão profanas,
lado a lado postas
fosse o predomínio do tom preto
como do profundo sobre o plano
para que só uma fresta,
uma réstia de luz se insinuasse,
espécie de anunciação,
às avessas, e queimasse o quadro
com fogo discreto, mas permanente,
e se desse a fuga
por aquela réstia de luz,
na tela sobrasse a ausência
e no canto a assinatura de um poeta
(De O xadrez e as palavras)
QUIROGA, Marcus Vinicius. Campo de trigo maduro. “ Prêmio Biblioteca Nacional “. Rio de Janeiro: RTC Edições e Publicações, 2006. 116 P. 14X21 cm. ISBN 85-7577-118-3 “ Marcus Vinicius Quiroga “ Ex. bibl. Antonio Miranda
IRREVERSÍVEL
desapareceu num quadro de Van Gogh
sem deixar vestígios
quem sabe o líquido que existia em sua taça?
talvez as palavras não tenham sido suficientemente tácitas
seria capturado num leilão tardio?
ou sob a forma de um trigo teria amadurecido
a paisagem e o desvario
(De Campo de trigo maduro)
GOYA
o quadro de Goya me devora
olhares
com dentes engolem
as primaveras
sobre a mesa da sala
nada
não mais flores mortas enfeitando o dia
na vida cômoda
o quadro de Goya
rejeita
a cor que não for sombra
(De Campo de trigo maduro)
De
Marcus Vinicius Quiroga
COMPOSIÇÕES EM PRETO E BRANCO
Rio de Janeiro: LitBras, 2009
140 p. ISBN 978-85--87096-13-5
Prêmio Vivaldi Moreira da
Academia Mineira de Letras - Menção honrosa
A CAMISA SETE DE MANÉ GARRINCHA
para Alfredo Jacinto Melo
Ele dribla João-joãos e até a sombra,
para e espera que o adversário retorne.
Então repete o drible e, como cabe ao ponta,
cruza na área oposta a precisa pelota.
Desliza no gramado e, leve feito uma ave,
foge dos estilingues que miram seu corpo.
Seu vôo é solto na hora em que lhe dão o passe
e, mesmo baixo, sobe no ar e marca o gol.
Finge-se de invisível aos olhos dos beques
e dribla o jogo com seus lugares-comuns.
Ri por dentro de tudo como se um moleque
que sempre prega peças na terra do nunca.
E, se alguém lhe pergunta de onde o seu driblar,
de onde o truque de seus pé que se mexem mágicos,
responde com um sopro e se faz pluma no ar:
Mané é apelido de menino-pássaro
O TABULEIRO DE XADREZ
A mesa posta só lembra a espera,
talvez a espera da morte, da peste,
ou jogo de xadrez com o propósito
de adiá-la, deixá-la à espera, só,
na ante-sala da vida, de ironia.
Em uma hora decerto serviriam
vinho sobre a toalha de xadrez,
para que a morte então perdesse a vez
no jogo e, sem olhar para o relógio,
esquecesse que a vida torna ao pó.
Com tudo em seu lugar, a mesa em ordem,
não há medo diante de tal morte.
Talvez seja afetuosa e aprecie
a boa prosa e cálices de vinho,
enquanto o tempo e o jogo passam lentos.
Na casa limpa, olham-se frente a frente
e brindam, mas no fundo esperam ainda
que a outra se embriague com o tinto.
Na toalha aparece estranha nódoa:
marca suja da vida, despropósito.
PALAVRA-CHAVE: FUTEBOL E POESIA
Página publicada em outubro de 2008., ampliada e republicada em junho 2010
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