Poemas inéditos
DA ESTRELA À LAPA
50 minutos de ruas estreitas que os motoristas atravancam,
depois do enleio dos carros e semáforos letárgicos,
o Rato aparece como um pátio,
uma estalagem por onde se passa vorazmente,
até que a cúpula da Estrela assoma sobre a floração das copas,
guardada por Pedro Álvares Cabral,
alçado como Netuno,
diante das primícias do Jardim.
Galharda postura que abraça os pináculos.
Como se defendesse a fé e natureza
em plena avenida cheia de psicopatas
que buzinam pra que eu avance o sinal.
Impossível meditar sobre a clepsidra do Camilo Pessanha.
Dobra-se a orelha do retrovisor lateral
e o resto é deslizar na ladeira estreita, sutilmente.
Três imagens emergem depois do perigoso périplo:
o Rato, largo conventual e purpúreo,
a Estrela, icone soberano
e o Cabral arrebatado, desfraldando a bandeirona
como se desbravasse, em frente à basílica, o litoral do Brasil.
31 DE DEZEMBRO DE 2005
O último dia do ano deveria ser um dia como outro qualquer.
Sem temores, sem sobressaltos.
Mas entristeci de pensar.
A canallha assovia, a sirene passa
e eu me deito sobre os meus 48 anos.
Da varanda vejo o Tejo.
A noite abriu-se como por encanto.
Há bulício nas casas e nas ruas.
Holofotes e estrelas anunciam
e eu desentristeço de expectativa.
Os barcos são candeias na fragrância das águas.
A meia noite acende os formidáveis fogos.
As auras fosfóreas produzem súbita aurora.
É já manhã na face lisa do Tejo.
LICENCA POÉTICA
Perplexo estou no rumor da hora,
espreitando os caprichos do tempo.
Pratiquei longamente a disciplina dos austeros
e hoje me permito a digressão.
Vislumbro o tumulto suburbano:
é a expressão do meu canto humaníssimo.
Meu sonho de poesia. Se mergulho profundamente em mim,
compreendo a dimensão da vida. A arte de viver em plenitude.
Minha ânsia é ver todos os espíritos em luz,
todos os viventos com o direito à felicidade,
todos conscientes da necessidade de viver em paz
e entender o mistério e decifrar as dádivas do vento.
Pertenco a todas as criaturas, a todos os minerais e vegetais,
sou um fruto sazonado em sentimento,
sou a energia e o artefato da natureza.
Alegria de ver a vida fluindo
nos meninos que jogam futebol no quintal,
nas aves canoras, na música que vibra na casa,
no clarão solar que acende o chão.
Permito-me a glória deste momento,
ciente da verdade que ele ensina.
Ser o milagre – ânima semovente e andar em confianca.
Transformar-me sempre na experiência vindoura
e manter-me aliado de mim. Servir sem distinguir a quem,
na certeza do objetivo superior. Compreender-me e compreeende o semelhante
como a planta compreende o céu, como a nuvem compreende os rios.
Este é o meu conforto e minha causa: coexistir o santo e o poeta e tudo resultará em serenidade.
Permanecer calmo ante o enigma, saber que o destino engendra sempre o bem
e dar gracas ao Mestre por esta licenca poética,
este momento único, a exuberância nectárea desta consciência,
esta translúcida realidade, aceitacão de mim mesmo,
imersão em reveladora magnitude.
HINO À PAZ
Triste é ver da guerra o rancor sangrento.
Irmãos matando irmãos nos conflitos da miséria humana.
Hei de aprender que a paz comeca em minha casa.
Como manifestar-me contra a violência,
se ainda sou capaz de agredir meu semelhante?
Um dia seremos todos verdadeiremante pacíficos,
todos amigos pelo coracao,
vivendo a igualdade espiritual
e o reconhecimento da verdade superior,
a lei que nos ensina harmonia.
Um dia serei essencialmente fraternos,
porque me arrependo dos meus gestos insensatos.
Mas sou o que no presente se gratifica pela sensacão.
Sou o que aprende o sentimento mais claro.
Duro é viver em desavenca.
Que a concórdia se estabeleca na personalidade humana,
que todas as virtudes nos defendam
e que um ideal estético seja o nosso pavilhão.
Um dia as nacões se visitarão em irmandades,
sem armas e sem orgulho e não teremos mais a tristeza dos confrontos.
A guerra será uma recordacão triste
e o comércio será sem concorrência,
mas com o objetivo único da substitência confortável de todos.
Há de haver trabalho bem remunerado
e oportunidade e instrucao para todos.
Eu canto o advento do novo mundo e da nova vida,
mas nao tenho a pretensao de ser profeta.
Sou apenas um admirador de Jesus
e creio na força de sua palavra,
na sua orientacão de pastor do rebanho a que pertenco.
Confio na mensagem que recebemos do divino ser:
O homem é uma dádiva do Criador
e havemos de reconhecer juntos esta lei maior.
A vida só tem sentido se caminhamos juntos.
A paz é uma ordem da consciência.
MEU CONSTRANGIMENTO
Os navios cintilam como palácios.
Lua sobre o arco de rutilâncias.
Noite clara diante do mar
e o meu constrangimento.
Ando tão magoado
que o mar parece a extensão das minhas lágrimas.
Brisa de aroma benevolente.
Música de enlevo como outrora.
Idílios clarividentes em todo o litoral
e o meu constrangimento.
A noite toda meditei sobre a morte.
A noite toda passei lendo amarguras.
Água translúcida sob a névoa.
Jardim romântico
e o meu constrangimento.
Vertigem de esplendor
e o meu constrangimento.
Meu constrangimento é uma lição de labirinto,
ácido que corrói a cartilagem dos prazeres.
Meu constrangimento diante das constelações.
Meu constrangimento, implacável,
coroa de espinho no horizonte de angústia.
Febre de amor, tormento de deleitável contrição.
Assombro em cada gesto do vento.
NOITE ETÉREA EM FORTALEZA
Noite etérea em Fortaleza,
ex-cidade dos meus encantos,
hoje recanto dos meus sonhos nostálgicos.
Cadê o rapaz que se apaixonava nos bares da beira-mar?
Sou eu esse que lamenta o existido,
o que se engana com a perspectiva do tempo.
Sou o que só no passado vê plenitude.
A hora presente é a ficção do segredo.
Só no futuro existe vida?
Imagem de esperança, visão martirizada pelo mistério.
Noite etérea que conheces o axioma cósmico,
o diálogo contigo é monólogo,
é o reflexo do meu enlevo angustiado.
PARTILHA
Na partilha de direitos e deveres,
a polícia tem o dever de não massacrar o indigente
e este tem o direito de dormir nos bancos de cimento,
sem ser incomodado.
O marginal não se perturba com os barulhos da noite
e o burguês não precisa temer o inofensivo vagabundo.
Eis o pacto social.
Até o momento em que algum insatisfeito o rompe:
a violência como argumento.
CÓDIGO URBANO
A todo cidadão se assegura o direito de dormir nas ruas.
Sujo, fedendo, doente de miséria,
A todo cidadão se assegura o direito a se degradar,
cair no chão em qualquer esquina,
na pedra no frio na lama,
até que a morte o conduza a algum espaço mais baixo.
Dormir na calçada é um direito humano,
mas vender muamba em frente às lojas é delito.
A Prefeitura leva tudo
e baixa a porrada em quem vier pela frente.
O VERDADEIRAMENTE ABOMINÁVEL
Tem-se o verdadeiramente abominável,
o histriônico de mau gosto, arrogante e degenerado.
O mais desprezível das mentes atrofiadas.
Gatunos fingidos, a escória, a ralé
que cultua a imundície,
a insalubridade como bandeira.
Não posso referir-me a eles sem o termo canalhas.
Sem hipérboles: são canalhas a golpes de patifaria.
Caminhar na chuva nessa espelunca,
molhando, em meio à buzinação.
A agonia insana dos sujeitos,
competindo por um palmo de espaço.
Tem-se o modelo mais perfeito do egoísmo humano.
As camionetas como balas disparadas
entre monturos de porcaria expostos aos elementos.
Andar a pé é um sonho.
Difícil é ter aonde ir.
Os esgotos jorrando,
o lixo fedendo em toda parte.
Esforço-me pra detestar um pouco menos o desrespeito à ordem,
a venalidade e a sandice.
Com a cabeça coberta de cinzas,
defender essa chusma de delinqüentes?
Sair por aí carregando a bandeira de ladrões,
nefastos e depravados?
Ser cego em Granada?
Mais difícil é ser inteligente na Ilha dos Patifes.
(Enviados por e-mail pelo autor em fevereiro de 2006)
EM DESESPERO PELA LIBERDADE
Uns sentem raiva de viver e explodem o corpo em mil pedaços.
Estilhaços se estraçalham levando junto os opressores.
Uns, armas empunhadas, vivem a serviço da crueldade.
Outros, metidos numa dinamite, renunciam à vida.
Aos remanescentes legam nuvens de fogo e destroços.
A morte como resposta aos desmandos,
ao opróbrio tenebroso.
Defender-se com a própria vida
e exterminá-la sem medo da dilaceração.
Antes morrer que submeter-se à escravidão.
A viver fustigado por metralhadoras, as ruas vigiadas,
as portas invadidas, a cara onipresente do inimigo à espreita,
o metal dos fuzis reluzindo ao sol,
antes morrer mil vezes despedaçado,
mil vezes o golpe inominável contra si mesmo
em defesa do suicida, sobreviver morrendo
em desespero pela liberdade.
Extraído do livro Sintaxe do Tempo . Fortaleza: Imprece, 2005. 90 p.
CATUNDA, Márcio. Verbo imaginário (Antologia poética). Sofia, Romênia: Roumena Publishers, 2000. 64 p. ISBN 954-8997-03-7 Inclui um CD. Apresentação na contracapa por Rumen Stoyanov. Col. A.M. (EE)
ENTRE O CONJUNTO NACIONAL E O CONIC
Pasce o gado humano entre o Conjunto Nacional e o Conic.
Passa gente de todo espectro: mendigos, operários,
burocratas tangidos pelo ruído agoniado dos carros.
Toda sorte de gente a passar na passarela,
no impasse ou na parcialidade em que a vida se transforma,
vida: matéria-prima do tempo, pasto de transitoriedade.
Nunca mais as mesmas pessoas passarão
e os que passam deixam rastros de nada.
Restam imagens, vultos, espectros entre dois mundos,
os polos da cidade.
No desvão entre o Conjunto Nacional e o Conic,
os que vão sob a redoma celeste passam, passageiros do instante.
Passam deixando-me na retina o retrato do Brasil:
o sanfoneiro cego, a mulher de peitos balouçantes,
o aleijadinho desengonçado que se desvia dos transeuntes,
os vendedores de miudezas oferecendo mangas,
bonecos de pano, discos piratas.
O sujeito do boné tatuando a coxa de uma cabrocha.
O outro que lambe um picolé.
As miríades de coisas ínfimas espalhadas na calçada.
Tudo ao preço de um real.
"Melhore a sua imagem" , diz o que oferece antenas de televisão.
E outras vozes: "12 linhas, 13 agulhas,
refresco de catuaba, milho verde,
pastel, churrasquinho, calcinha, camisinha", etc.
De repente, um grito... Olha o rapa!
a negrada arruma a trouxa e se desabala no rumo da Rodoviária.
O policial esgalgo urubuserva tudo, especialmente as mulatas,
(as brasileiras partes tingidas de sol).
De Ceilândia, de Taguatinga, de Samambaia,
desfila um brasil de passo inconsciente,
que passivamente expõe etnias e castas,
neste elo que conecta os extremos de Brasília.
Diante de mim, os obeliscos do Legislativo,
a sequência dos Ministérios simetricamente perfilados.
Diante de mim, em um minuto passam as duas mil caras do Brasil,
da casa grande à sensala, da favela ao shoping,
do latifúndio à sarjeta,
a cor morena denunciando as proezas do avô lusitano.
"Dá uma esmola fi-da-mãe-de-Deus",
pede a mulher com o pequenino ao colo...
Com ar solene, a legião distribui minúsculos papéis
como se revelasse mistérios.
|