Foto do poeta em 1990
LÚCIO AUTRAN
Nasceu no Rio de Janeiro em 1957. Escreve sobre literatura e artes plásticas. Livros de poesia: O piloto anônimo (Ed. Global, 1985), Um nome (Ed. Timbre-Taurus, 1987), Anima(l) (Editora Seis, 1993) e Centro (Ed. Francisco Alves, 1999). Participou do célebre encontro Artes e Ofícios da Poesia (MASP, 1990).
BORGES, CÃO ABSURDO
Cão cego
vejo
leio o caminho
trágico
Cão cego
sujo
leva no escuro
palavras
Cão cego
claro
sua imagem nada
absurda
Mundo surdo
tudo é transparência
leitor turvo,
cão noturno
Cão absurdo
uiva em mim, late
latas nas margens
minhas veias
Cão absurdo
a lógica do seu passo
cego, nos ensurdece
a seu olhar
Sua voz
sua opinião
dândi burlesco
“son polvo del planeta”
Sua palavra
é o planeta
a terra inteira
como poeira
Grão
Cão cego
imundo
o odeio
como se ama um pai.
GALO
“Um galo sozinho não tece a manhã!
J.C. de Melo Neto
Galo tardio
todos se foram
é acordar o vazio
Galo inútil
meu canto é só
mudez inconsútil
Galo, destroços
tempo de mudos
de galos mortos
Galo intátil
meu poleiro
a Via Láctea
Arranco os olhos
(cortam cadentes
o cosmo), e o galo
me calo.
Extraído de:
POESIA SEMPRE – Revista Semestral de Poesia. ANO 3 – NÚMERO 6 – OUTUBRO 1995. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Ministério da Cultura, Departamento Nacional do Livro, 1995. Ex. bibl. Antonio Miranda
BH HOTEL
Deitar sobre ti
sobresta cidade
É deitar sobre de luz
na minha raiz mais escura:
Meu pai amor no parque,
eu amo na altura.
NEVE TURVA
A Borges
Meio à neve o trem
vara a brancura, névoa
nuvem que me leva
a duas cidades: Paris.
Uma que conheço outra
a neblina oculta, não se vê,
meio a névoa te encontro
no olho neve da paisagem
Não contigo, precário
cão, com o melhor de ti:
o amarelo que não morre
ouro dos teus olhos neve
Neve alpina que não vemos
nem austral, neve tropical,
frio de nossa dupla cegueira
esse inútil inconsútil e cego
Frio: o frio das palavras.
Meio a neve nevoam
cores, brilha nossa herança:
poeira do museu dos versos
Revolvo essa neve nevoa
em ti encontro meu reverso:
Neves derretem palavras
desfazem os rio da vaidade
Tua imagem escapa dos olhos
meus dedos te tateiam.
Não mais nos reconhecemos
nossas palavras nos falseiam.
Somos nossa própria miragem.
Página publicada em janeiro de 2010; ampliada em janeiro de 2018
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