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LUCIA AIZIM
Lucia Aizim nasceu na Ucrânia em 1915. Em 1919, sua mãe emigrou para o Brasil acompanhada das duas filhas, Lucia e Luba. Veio para a cidade do Rio de Janeiro, onde já viviam seus pais.
Formou-se na Academia de Comércio Cândido Mendes, trabalhou alguns anos, casou-se e depois dedicou-se à família por Publicou seu primeiro livro de poesia em 1974. Faleceu em 2006.
“Sem nenhuma afetação no dizer, sem qualquer gesto de rebeldia ou extravagância, a escritura de Lucia Aizim firma-se nos alicerces de uma verdade interior, inexpugnável e, de acordo com a condição feminina, delicadamente, arisca. Sensibilidade, emotividade, lucidez, percepção de valores humanos, entendimento da beleza natural, dom de concentração e espírito de fé são elementos que, reunidos, identificados e trabalhados com amor, perfazem a estrutura de sua obra poética.” HENRIQUE LISBOA
“Quem trabalha assim o ritmo e o encontra e “encanta” é porque encontrou também a poesia. Moderna. IVAN CAVALCANTI PROENÇA
AIZIM, Lucia. Exercício efêmero. São Paulo: Roswitha Kempf Editores, 1982. s.p. 16x23 cm. Capa de Fayga Ostrower. Apresentação por Henriqueta Lisboa. Col. A.M. (EA)
ANTE-MANHÂ
Quando os azuis todos
fluem no espaço
antes que venha o novo dia.
Penso às vezes: breve,
todo este azul
será esquecimento.
Elo, apenas, muito antes,
entre uma coisa perdida
e outra, a perder-se.
FIDELIDADE
Antes que todas as luas se desfaçam
e sobrevenha o grande mistério.
Beberei seus pânicos e uns restos de luz
quem sabe de que indefinida existência.
Talvez advindo de hábitos já distantes.
Então como todos os dias, não mais
como alguém que habitara a terra.
Tampouco criatura de outros espaços.
Mas como alguém que, retomando
o caminho habitual.
Contudo diferente.
Prepararei o repasto,
enfeitarei com frutas
o mesmo prato de cristal azul.
VIGÍLIA
Outra vez,
estes solitários pousos:
Silvestre, Dona Mariana,
Santo Amaro, Paraíso.
Noites e noites.
Insone,
busco o estranho leito
em abandono.
PRELÚDIO
O que a mão não gravou.
O que por dúbio, o tempo
não trouxe.
O que o amor não fruiu.
Esquece.
Não há modos
de fazer retomar
tudo isso.
As coisas se chamam nunca mais.
POESIA SEMPRE. ANO 8 . NÚMERO 13 – DEZEMBRO 2000. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Ministério da Cultura, Departamento Nacional do Livro, 2000. ISBN85-901646-1-6 Editor Executivo Ivan Junqueira. Ex. bib. Antonio Miranda.
Infância
Não deixaram palmo sobre palmo
Cavaram e destroçaram o solo.
E as cabras baliam entre
as entranhas das casas.
Os bárbaros!
Deus havia olvidado seu povo.
Esquecido que um dia palmilharam
a cidade das tamareiras nos dias de Josué.
Então pusemo-nos a caminho
e partimos.
Digo-vos, pois, sob a fé
daqueles que nos antecederam.
Que antes de havermos cruzado
o chão de Nápoles e Roma.
Onde aprendemos
uns mágicos vocábulos.
Era já chegada a primavera.
E passamos a nos abastecer
de frutas e verduras.
Através de uma cestinha
suspensa no ar. Em sua frágil
viagem — para cima e para baixo.
Quase uma história medieval
Digo-vos, pois, outra vez
Não sei de crianças com faces
mais rosadas — e luxo maior.
Um dia, a mulher desceu os sete
lances de escada. E comprou
vestido ornado de renda
para cada uma das meninas.
Um anjo havia passado
E nem percebeu.
Entanto nunca hei de esquecer a beleza
peregrina desta
fábula.
Madrigal
Ah, em meio a sons e tons
cheguei à velha idade.
Em que a traiçoeira e simulada
Senhora me abateu.
E ano após ano meu rosto se cobriu
de espesso e rugoso véu.
Valeu o disfarce?
(Assim expira o mundo
não com uma explosão, mas com um suspiro).
Quando penso no que fui. Na flor
da vida e no que sou agora.
Que possuía dons e domínios
Que do amor me vi separada
sem saber como nem por quê.
Assim o tempo choramos.
Quando penso no que era. Na flor
da vida, o corpo, a pele ardente
e claros olhos para o alto erguidos.
Eram finos meus sentidos
mais que finos distendidos.
Quando olho no espelho agora
pobre, velha, miúda.
Quede o tempo de louvor havido?
Depois, chegáramos ao plácido
rio onde tudo é calmo e frio.
Tremo diante das águas
Estão por mim a chamar
Estão a chamar-me, e a voz
se perde entre quimeras.
Assim o tempo choramos.
Então,
nós velhas e pobres mulheres
sentadas no chão — sobre
os calcanhares — agachadas
como mulheres que já foram belas
hoje outonais. Heras
obre um muro qualquer.
Página publicada em junho de 2012; página ampliada em maio de 2018.
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