PARNASIANISMO / POETAS PARNASIANOS
JÚLIA CORTINES
(1868-1948)
Júlia Cortines Laxe nasceu em Rio Bonito, Rio de Janeiro. Pouco se sabe da vida desta notável, mas quase esquecida, poetisa mas presume-se que haja exercido o professorado, tendo colaborado nos jornais e revistas de sua época, entre eles A Semana.
Obra poética: Versos (1894) e Vibrações (1905).
A VINGANÇA DE CAMBISES
Disseram — diz o rei a Prexaspes — que o vinho
Sobe presto à cabeça em denso torvelinho
De vapores, e a febre, o delírio produz,
Que irradiam no olhar uma sinistra luz.
Ou, pouco a pouco, pelo organismo se entorna,
Qual onda de torpor, voluptuosa e morna?
Disseram; e tu tens a ousadia de vir
Em face de teu rei palavras repetir
De estultos, e afirmar que o vinho afrouxa braços
Que fazem, como os meus, os reinos em pedaços?
Ao contrário; verás; (e bêbado entesou
No arco a flecha) porém é preciso que aponte
Um alvo; — o coração de teu filho.
E atirou,
Da criança, que nele o doce olhar fitava,
— Olhar que o etéreo azul do infinito espelhava, —
Varando lado a lado o peito e o coração.
E o pai disse, curvando humildemente a fronte:
— "Nem de Apolo é mais firme e mais certeira a mão."
Versos (1894)
O LAGO
Um pouco d'água só e, ao fundo, areia ou lama,
Um pouco d'água em que, no entanto, se retrata
O pássaro que o vôo aos ares arrebata,
E o rubro e infindo céu do crepúsculo em chama.
Água que se transmuda em reluzente prata
Quando do bosque em flor, que as brisas embalsama,
A lua, como uma áurea e finíssima trama,
Pelos ombros da noite a sua luz desata.
Poeta, como esse lago adormecido e mudo
Onde não há, sequer, um frêmito de vida,
Onde tudo é ilusório, e passageiro é tudo,
Existem, sobre um fundo, ou de lama ou de areia,
Almas em que tu vês, apenas, refletida
A tua alma, onde o sonho astros de ouro semeia! Interrogação
Vibrações (1905)
INTERROGAÇÃO
Contemplo a noite: a cúpula estrelada
do firmamento sobre mim palpita;
meu olhar, que a interroga, embalde fita
o olhar dos astros, que não vêem nada:
— Nessa amplitude lôbrega e infinita
que inteligência ou força inominada
numa elipse traçou a vossa estrada,
estrelas de ouro, que o mistério habita?
Dizei-me se, transpondo a imensidade,
alguma coisa a vós minha alma prende,
um vínculo de amor ou de verdade.
Dizei-me o fim da nossa vida agora:
para que serve a luz que em vós resplende,
e a oculta mágoa que em meu seio mora?...
FRACOS
Fracos, odeio a inércia e detesto a fraqueza.
Prefiro a mão que esmaga ou que vibra o punhal
À doce e inconsciente e nefasta moleza,
Que é para a alma do forte um veneno mortal.
Como de encontro à costa, em ondas remansadas
Chora o mar, ou se atira em bravos vagalhões,
Assim de encontro a vós, almas adormentadas,
Fremem de ódio e de amor os nossos corações.
Almas fracas, fugindo à aspereza das lides,
Sem um esforço para às correntes opor,
Pelo rio do tempo arrebatadas ides,
Desta ou daquela vaga a boiar ao sabor.
Que vos importa a vós a agonia da luta,
A ânsia de possuir, o infinito aspirar?
Que vos importa a vós a decepção que enluta,
Se não sabeis querer, nem sabeis adorar?!
Vibrações (1905)
ÚLTIMA PÁGINA
Antes de mergulhar no silêncio da morre,
Ou da idade sentir a fraqueza e o torpor,
Eu quisera lançar, num supremo transporte,
Meu grito de revolta e meu grito de horror.
Mas sei que por mais forre e por mais estridente
Que ela corra através do infinito, até vós,
Ó céus, que além brilhais numa paz inclemente,
Nem qual brando rumor chegará minha voz!
Mas' sei que não há dor que a natureza vença,
E que nunca a fará de leve estremecer
Na sua eternidade e sua indiferença
O lamento que vem dum transitório ser.
Mas sei que sobre a face execrável da terra,
Onde cada alma sente, em torno, a solidão,
Esse grito, que a dor duma existência encerra,
Não irá ressoar em nenhum coração.
Contudo, num clamor de suprema energia,
Eu quisera lançar minha voz! Mas a quem
Enviar esse brado imenso de agonia,
Se para o compreender não existe ninguém?!
Vibrações (1905)
Extraído de:
CUNHA, Fausto. A Leitura aberta: estudos de crítica literária. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: Instituto Nacional do Livro – INL, 1978. 301 p Inclui a seção “Estudos de poesia brasileira” sobre Júlia Cortines, Alberto da Costa e Silva, Poesia do Sul, Augusto dos Anjos, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, Mauro Mota; uma seção dedicada à “Poesia e Poética de Mario Quintana”. “ Fausto Cunha “ Ex. bibl. Antonio Miranda.
Datam de 1886 as composições mais antigas do primeiro livro. Uma delas, o soneto “Tarde de Inverno”, é dos poucos trabalhos da autora que lograram maior penetração. Há talvez um excesso de adjetivos, mas todos eles se integram melodicamente no verso e o conjunto denota pulso descritivo e sentido de harmonia verbal:
TARDE DE INVERNO
Sob o curvo cristal da imensidade
De um céu de transparência etérea e fria,
Em que do posto a sol a claridade,
Azul e melancólica, radia,
Vemos o bosque, o rio, a amenidade
Das sombras, a ondulada pradaria,
Como um painel de estranha suavidade
E encantadora e rústica poesia.
Olha como o formoso fruto loiro
Salpica de pequenos pontos de oiro
Aquela verdejante laranjeira!
E além, além, do céu no alaranjado
Fundo se esbate e avulta o recortado
E sombrio perfil da cordilheira. . .
O decassílabo final, por seu andamento rítmico e pela alternação melódica obtida com a vogal "i", que estrutura o verso em combinação com vogais surdas ou contrastantes, tem a beleza majestática da paisagem evocada.
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Nos Versos utilizou Júlia, sobretudo, o decassílabo, que iria abandonar quase totalmente nas Vibrações, onde o predomínio do alexandrino é quase absoluto. Também não se confirmaram certas tendências simbolistas do primeiro livro. Pelo contrário, parnasianizou-se ainda mais no segundo volume. Todavia, é de notar-se que há neste um soneto não somente de feitio simbolista senão também, à primeira vista d'olhos, abebeberado em Cruz e Sousa: "Alma Solitária". Está claro que, se se quiser fazer uma análise rigorosa da peça, poder-se-á, mais uma vez, retroceder ao Romantismo, com seus símiles, suas metonímias, suas fórmulas, "a tenda no deserto", "a areia do deserto", "o voo audaz", "a asa da inspiração". As fronteiras entre o Parnasianismo e o Simbolismo, quando abolidos, do primeiro, o descritivo rígido e, do segundo, o vocabulário característico, são difíceis de precisar, pelo menos em determinados poemas daquela fase de transição e em determinados autores, que não se definiam ou sofriam contaminações inevitáveis.
Vale a pena transcrever na íntegra "Alma Solitária":
ALMA SOLITÁRIA
O que sentias era o que ninguém sentia:
O ódio, o amor, a saudade, a revolta tremenda.
Não há ninguém que te ame e te console e entenda.
Ninguém compartilhou tua funda agonia.
A alma que possuir acreditaste, um dia,
Indiferente, vai a trilhar outra senda.
Do infinito deserto ergueste a tua tenda
Em meio à solidão da paisagem vazia. . .
E ora num voo audaz, ora num voo incerto,
Entre o fogo do céu e a areia do deserto,
A asa da inspiração finalmente cansou. . .
Mas a tua ansiedade e a tua angústia acalma.
— Sobre o abismo cavado entre as almas, ó alma,
Ninguém, para transpô-lo, uma ponte lançou.
Página ampliada e republicada em janeiro de 2015
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