NOTURNO Nº 1
Não sei se consigo acumular desertos.
Não sei me situar sem bússolas.
Ignoro o por que do peso do tempo.
Ignoro a aflição desse podar inútil.
Quando imersos estamos na noite funda,
quando o ruído dos automóveis
é um giz zunindo no quadro-negro,
ou unhas cravando-se em seda,
ou dentes raspando cascas de tomate,
não sei ser a tela do meu próprio filme.
Impossível sentar na sala escura
e esperar.
Os instantes passam sorrateiros
de um canto a outro
e pensamos que são ratos corroendo estofo.
Por que então lanço perguntas
se elas me traem
como pontas de lápis se partindo?
Com este texto queria te alcançar.
Mas ele adere como cola sobre a mesa.
Tanta tinta amarrada.
Tanta tinta amarfanhada.
Só sei acumular desertos
e preservá-los como ouro e inseto.
Ruas do centro aos domingos,
estátuas,
pombos esvoaçando,
relógio da Mesbla que se perde na presteza das horas.
Noite que constrói castelos
para o dia os fazer ruir.
Mas dos escombros escapam pássaros.
Cantam o augúrio lastimoso
só percebido
pelos cegos peregrinos
cantadores de cordel e viola,
que perpassam por caminhos que procuro.
NOTURNO Nº 2
Quantas noites me recobrem
e se alargam diante dos meus olhos
e engolem meu espírito em fluxo,
como a rua na hora do rush,
que se estilhaça em luzes vermelhas
num escurecer contínuo
e se inscreve em letreiros picantes,
que lutam contra o espesso breu do céu?
Quantas noites me recobrem
e — apesar do medo — me atraem
e se digo: espera! se aproximam como ondas mansas
de um lago escuro?
São trajetórias perdidas, pássaros que migram,
retornam à origem ou anseia pelo fim,
são épocas e eras que sussurram
e nunca, nunca me acenam adeus;
me pressionam urgindo
e farfalham:
folhas pisadas sob a chuva.
Em tudo há alguém que espreita.
Que noite me antecede e me busca?
PANCETTI
A mim foi vedado olhar teu rosto
de próprio punho pintado:
à face que se estuda ao espelho
permite-se entrever uma nesga
Do espírito que voga sem saber.
Nesga azul decerto:
o espírito que contempla
o mar nada mais traz senão
Azul. E nesse azul te entorpecias,
como se dele, só dele, vibrasse o canto
que te ameaça, Navegante.
Por isso o puseste mudo.
Mas esse azul, essa areia e esse barco pousado
nos conduzem mais longe do que pensavas.
BUSCA
Onde foram parar teus gestos, teus sinais?
Onde foram parar tuas espáduas,
teus braços,
teu rosto que
se busco esboço
chamuscando no espaço
— triturada mariposa —
os traços que se foram e perdi, mas
onde foram parar nossos fracassos mútuos,
nossas frágeis tentativas,
nossos ágeis desenhos corporais,
que ainda reclamo
e se grito
— trovoada em céu seco —
enrouqueço e espero o eco surdo?
Onde foram parar meus delírios
que não sabem mais te inventar?
N. Y. REVISITED
Em cada esquina tem
uma mulher de vermelho
acenando para um yellow cab.
Em cada esquina tem
um yellow cab
parando para uma mulher de vermelho.
Em cada esquina tem
uma mulher de vapor
acenando para um yellow cab de vidro.
Em cada esquina tem
um yellow cab de vapor
parando para uma mulher de vidro.
Em cada esquina tem
um vapor de mulher
acenando para um yellow cab de vidro.
Em cada esquina tem
um vidro de yellow cab
parando para uma mulher de vapor.
Em cada esquina tem
um vapor de vidro
acenando para uma mulher de vermelho.
Em cada esquina tem
um vidro de vapor
parando para um yellow cab.
(E o violino aveluda
o interior do táxi).
Página atualizada em junho de 2010.