JOÃO CARLOS PÁDUA
Poeta e letrista carioca que, nos anos 1970, esteve entre os autores do chamado grupo da "poesia marginal".
Pádua, que, em 1974, lançou o livro "Motor", participou, dois anos depois, da coletânea "26 poetas hoje", organizada por Heloísa Buarque de Hollanda, ao lado de, entre outros, Cacaso, Chacal, Bernardo Vilhena, Geraldo Carneiro e Waly Salomão.
Como letrista, foi parceiro de compositores como Danilo Caymmi, João Donato, Nando Carneiro, Egberto Gismonti e Jaques Morelenbaum.
Extraído de
POESIA SEMPRE – Revista Semestral de Poesia. Ano 5 – Número 8. Junho 1997. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional – Ministério da Cultura. Departamento Nacional do Livro, 1997. Ex. bibl. Antonio Miranda
Autobiografia precoce
A tangerineira desclassifica-se em frutos,
enquanto a amoreira, necessitada de poda,
desencanta-se numa lassidão triste de se ver.
Por outro lado, a hortelã-pimenta
promete vida longa,
o que, outrossim, acontece com os pimentões.
0 mesmo não se pode dizer,
entretanto,
dos melões que,
melancólicos,
definham a olhos vistos.
Invadindo a paisagem,
o vento nordeste,
que fustiga meu rosto e as folhas do abacateiro,
traz notícias daqueles tempos.
Bob Dylan e conhaque George Aubert;
like a Rolling Stone
em plena rua do Riachuelo;
Dexamil e a cavalaria da polícia militar;
Dops, Cenimar...
Aquele Corcel cinza despejando tiros
sobre os transeuntes.
Era festim, até o velho cair de joelhos.
O sangue inundado o cérebro,
manchando o asfalto.
O medo, o silêncio.
Entre pernas, sorrisos e baratas,
o lacrimogéneo esgar de um animal
prematura e mortalmente ferido.
(os olhos fundos de Franz Kafka
passeiam pelas ruas centrais da cidade)
Depois houve um momento
em que a prática
— sempre o critério da verdade —
volatilizou-se em miríades de certas incertezas
e a construção do que parecia lógico
impôs-se como tarefa inequívoca,
entre o ruído insano dos automóveis
e a agressão pétrea dos edifícios.
Mas razão e revolução
desaguaram no coração.
Vieram então
as longas noites de dentes trincados
e as tenebrosas manhãs
de pedra e cal
em Copacabana.
Ai, as tenebrosas manhãs de Copacabana!
O mundo lembrava seu fim,
e a felicidade era um rosto triste
num trem que passara em alta velocidade.
(a chuva forte comprometeu o espetáculo
naquele Flamengo x Grêmio)
Hoje,
plantado à barra do São João,
por detrás da casa de Casimiro de Abreu,
não me ocupa descobrir
a verdadeira essência da vida;
desvendar-lhe os mistérios,
livrando-me de suas enganosas aparências,
recompor-lhe o mosaico de ilusões;
visto que tal tarefa
muito pouco acrescentaria
à minha cotidiana peregrinação
entre
a estupefação e o delírio.
A simples e ingênua constatação
de que o rio ainda corre para o mar
me basta e tranquiliza.
Por isso,
entre as goiabas podres no chão
e as carambolas verdes no pé,
deito agora à terra, cético e feliz,
os restos da graviola da infância.
Página publicada em janeiro de 2018
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