Fonte:
www.academia.org.br
IVAN JUNQUEIRA
Ivan Junqueira já foi chamado, com inteira justiça, de “o poeta do pensamento”. Carioca, nascido em 3 de novembro de 1934, Ivan Nóbrega Junqueira é também um premiado ensaísta (O encantador de serpentes, 1987; O signo e a sibila, 1993; O Fio de Dédalo, 1998), crítico literário de incomum dignidade humanística e tradutor de T.S.Eliot, Marguerite Yourcenar, Marcel Proust, Dylan Thomas e Charles Baudelaire, de quem verteu para nosso idioma o inigualável poema As Flores do Mal.
Sua extensa obra poética (de Os Mortos, 1964, a Poemas Reunidos, 1999), preocupada com questões políticas e metafísicas, abriu-lhe as portas da Academia Brasileira de Letras, onde ocupa a Cadeira nº 37, patroneada pelo poeta inconfidente Tomás Antônio Gonzaga, e de que foi Presidente no biênio 2003-05.
TEXTOS EM PORTUGUÊS / TEXTOS EN ESPAÑOL
JUNQUEIRA, Ivan. Essa música 2009-2013. Rio de Janeiro: Rocco, 2014. 95 p. 14x21? cm “Orelha” do livro por Marco Lucchesi. ISBN 978-85-325-2924-4 “ Ivan Junqueira “ Ex. bibl. Antonio Miranda
“Essa música alcança o zênite de sua trajetória poética. Amparo-me na sentença de Ovídio, epígrafe da obra: “E o que tentava dizer, era verso.” Assim continuará a ser a dicção de Ivan Junqueira. Mas não é Ovídio quem diz, e muito menos este seu leitor. É “O Poema”, que abre o livro. Nele se reconhecem o sumo e a suma de sua poética: “Ele se escreve vindo do centro — de si mesmo,” Quem vai calar essa voz? ALFREDO BOSI
O POEMA
Não sou eu que escrevo o meu poema:
ele é que se escreve e que se pensa,
como um polvo a distender-se, lento,
no fundo das águas, entre anêmonas
que nos abismos do mar despencam.
Ele é que se escreve com a pena
da memória, do amor, do tormento,
de tudo o que aos poucos se relembra:
um rosto, uma paisagem, a intensa
pulsação da luz manhã adentro.
Ela se escreve vindo do centro
de si mesmo, sempre se contendo.
É medido, estrito, minudente,
música sem clave ou instrumentos
que se escuta entre o som e o silêncio.
As palavras com que em vão ao invento
não são mais que ociosos ornamentos,
e nenhuma gala lhe acrescentam.
Seja belo ou, ao invés, horrendo,
a ele é que cabe todo engenho,
não a mim, que apenas o contemplo
como um sonho que se sustenta
sobre o nada, quando o mito e a lenda
eram as vísceras de que o poema
se servia para ir-se escrevendo.
RELÂMPAGO
A navalha de luz do relâmpago
rasga a carne da escuridão
com um estrondo que reboa
mais alto que as trombetas do Juízo.
Será assim o clarão que nos cega
quando a alma, extenuada,
galga os degraus da imortalidade?
Seis Poemas de Ivan Junqueira
Seleção e apresentação de
Fabio de Sousa Coutinho
Tristeza
Esta noite eu durmo de tristeza.
(O sono que eu tinha morreu ontem
queimado pelo fogo de meu bem.)
O que há em mim é só tristeza,
uma tristeza úmida, que se infiltra
pelas paredes de meu corpo
e depois fica pingando devagar
como lágrima de olho escondido.
(Ali, no canto apagado da sala,
meu sorriso é apenas um brinquedo
que a mãozinha da criança quebrou.)
E o resto é mesmo tristeza.
Elegia Íntima
Minha mãe chorando no fundo da noite
rachou o silêncio do quarto adormecido.
Meu pai olhava o escuro e não dizia nada,
Um relógio preto gotejava barulho.
Lá fora o vento lambia as espáduas do céu.
Minha mãe chorando no fundo da noite
Apunhalou o sono de Deus.
Madrigal
Azul e pontual,
o céu acordou:
cada aurora
em seu horizonte.
Mas a pergunta,
Como um gládio
em riste, cravou
seu aço no vazio
— e lá, imóvel, ficou
esperando a resposta
que não raiou.
Hoje
A sensação oca de que tudo acabou
o pânico impresso na face dos nervos
o solitário inverno da carne
a lágrima, a doce lágrima impossível...
e a chuva soluçando devagar
sobre o esqueleto tortuoso das árvores
Haicai
Na gaiola jaz
o pássaro
sem espaço
O Poema
Que será o poema,
essa estranha trama
de penumbra e flama
que a boca blasfema?
Que será, se há lama
no que escreve a pena
ou lhe aflora à cena
o excesso de um drama?
Que será o poema:
uma voz que clama?
Uma luz que emana?
Ou a dor que algema?
(de A Sagração dos Ossos)
Talvez o vento saiba
Talvez o vento saiba dos meus passos,
das sendas que os meus pés já não abordam,
das ondas cujas cristas não transbordam
senão o sal que escorre dos meus braços.
As sereias que ouvi não mais acordam
à cálida pressão dos meus abraços,
e o que a infância teceu entre sargaços
as agulhas do tempo já não bordam.
Só vejo sobre a areia vagos traços
de tudo o que meus olhos mal recordam
e os dentes, por inúteis, não concordam
sequer em mastigar como bagaços.
Talvez se lembre o vento desses laços
que a dura mão de Deus fez em pedaços.
(de Poemas Reunidos, Ivan Junqueira, Ed. Record, 1999)
JUNQUEIRA, Ivan. A sagração dos ossos (1980-1993). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. 124 p. 14x21 cm. Capa: Victor Burton. ISBN 85-200-0293-5 Col. A.M.
Testamento
Sem trilhas no labirinto,
solitário, a passo lento,
leio o infausto testamento
de um infante agora extinto.
O que ensina esse lamento
a quem o escuta e, faminto,
só o aprende à luz do instinto,
e nunca à do entendimento?
Não será acaso o vento
o que nas vértebras sinto?
Ou será que apenas minto,
e mente-me o pensamento?
Não há dor nem sofrimento
no que leio, mas consinto
em que ali tudo está tinto
do mais fáustico argumento:
não o aroma do jacinto
nem a paz do esquecimento,
mas o grifo que, violento,
verte o verde do absinto.
No leito fundo
No leito fundo em que descansas,
em meio às larvas e aos livores,
longe do mundo e dos terrores
que te infundia o aço das lanças;
longe dos reis e dos senhores
que te esqueceram nas andanças,
longe das taças e das danças,
e dos feéricos rumores;
longe das cálidas crianças
que ateavam fogo aos corredores
e se expandiam, quais vapores,
entre as alfaias e as faianças
de tua herdade, cujas flores
eram fatídicas e mansas,
mas que se abriam, fluidas tranças,
quando as tangiam teus pastores;
longe do fel, do horror, das dores,
é que recolho essas lembranças
e as deito agora, já sem cores,
no leito fundo em que descansas.
TEXTOS EN ESPAÑOL
Traducciones de Francisco Hernández Avilés
Tal vez el viento sepa
Tal vez el vieno sepa de mis pasos,
de las sendas que mis pies ya no transitan,
de las olas cuyas crestas no desbordan
más que la sal que escurre de mis brazos.
Las sirenas que escuché no despiertan más
la cálida pasión de mis abrazos,
y lo que la infância tejió entre sargazos
las agujas del tiempo ya no bordan.
Sólo veo sobre la arena vagos trazos
de todo lo que mis ojos mal recuerdan
y los dientes, por inútiles, no aceptan
siquiera masticar ni los bagazos.
Tal vez se acuerde el viento de esos lazos
que la dura mano de Dios hizo pedazos.
La consolación de los huesos
Vi a mi padre en las fajas de neblina.
Estaban tan frias sus manos difuntas,
estaban terribles sus cuencas vacías.
Vi a mi padre, su voz casi inaudible,
llamámdome a sua desvalido regazo
y la frente ciñendome con una aureola
de flores y de ramos ya marchitos.
Vi a mi padre. Y sonreía.
Sus labios se entreabrian como lírios
desdém alguna extinta y lívida hondonada.
Sus pies inmensos recorríanla distancia,
y lo que entre nosotros fue conflicto y abismo
ahora se fundia en íntimo convivio.
Vi a mi padre. Le vi su locura, las piernas
finas, su carraspera, su edema, la hipondría.
Y los caballos, los naipes, el vino.
Era él, no a quien yo había visto un dia
inútil y seráfico en el ataúd,
adornado con llamas y espinas.
Vi a mi padre. Era un prodigio
que encantaba a damas y niños,
y en una esfera aprisionara un grito.
Vi a mi padre. Era un dandy y un mendigo.
Partió veloz al atardecer. El cielo
se deshacía en púrpura y agonia.
Se ha ido. Ahora es lágrima y dilirio.
Extraído de BLANCO MÓVIL, n. 75. México, DF, Primavera de 1998. “Poetas de Brasil”.
http://www.senado.gov.br/noticias/tv/videos/cod_midia_237867.flv
Página ampliada e republicada em novembro de 2008, ampliada e republicada em março de 2013.
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