HELENA PARENTE CUNHA
Nasceu em Salvador (BA), em 1930. Poeta, ficcionista, tradutora, professora universitária, pesquisadora, ensaísta e crítica literária. Em 1954, com bolsa de estudos da CAPES, especializou-se em Língua, Literatura e Cultura Italiana em Perúgia (na Itália). Seus primeiros escritos foram publicados no Suplemento Literário do jornal Estado de São Paulo, na revista Tempo Brasileiro, na Revista Brasileira da Língua e Literatura, entre outros. Em 1956, deu inicio aos seus trabalhos de tradutora de obras da língua italiana. Trabalha, desde 1968, na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Estreou, em 1960, com o livro de poemas Corpo do gozo, premiado no Concurso de Poesia da Secretaria de Educação e Cultura da Guanabara, em 1965. Outros livros de poesias da escritora: Corpo no cerco, editora Tempo Brasileiro, 1978, com apresentação de Cassiano Ricardo; Maramar, editora Tempo Brasileiro, 1980; O outro lado do dia, editora Tempo Brasileiro, 1995; e Além de estar, editora Imago, 2000 (reúne seus livros de poesia anteriores, além de trazer material inédito). A poesia de Helena Parente Cunha tem o mérito de iniciar no país um avanço em relação ao Concretismo — experiência que iria desaguar no movimento neobarroco, principalmente com o poema “Além de estar”.
Faleceu em 11/03/2023
Salomão Sousa
ALÉM DE ESTAR
vesti-me com a luz pendida
nas espumas que mais brancas
nas ondas que mais ondas
descontei o meu ficar
nas pedras depois das pedras
meu deixar-me por deixar
nos azuis de mais que azul
meu estar-me além de estar
CREPUSCULAR
perpendicular
ao caminho
insisto
andar
circunscrita
na hora
duro
o percurso
horizontal
cheguei
para
me crepuscular
BLOQUEIO
onde sopra agora o vento
que levava o que eu dizia?
onde se perderam os nomes
que tantas coisas tiveram?
onde ficaram as coisas
chamadas em minha voz?
e minha voz
como assim subtraída?
gosto de pedra
na saliva em minha língua
as palavras me emparedam
onde houvera minha boca
RETRATO
de agora a mil horas
o meu retrato
ainda estará aqui
quem aparece
onde pareço?
pouso de passagem
na fotografia
atrás do quadro
que me contorna
desapareço
quem comparece
na própria face?
poso de novo
(me encontra pronta
cada hora que mil)
de agora a mil horas
quem perece
no meu retrato
RAMALHO, Christina. Dois ensaios sobre poesia: Fênix e harpia: Faces míticas da poesia e da poética de Ivan Junqueira; Desejo de tulipas: O eu em expansão na poesia de Helena Parente Cunha. Santa Cruz do Sul, RS: EDUNISC, 2007. 136 p. ISBN 978-85-7578-180-7 O primeiro ensaio já fora publicado anteriormente pela Academia Brasileira de Letras. Col. A.M.
“(...) falar da poesia de Helena Parente Cunha é desvelar uma voz muito peculiar, direcionada para a descoberta do ser e do mundo por meio do encontro com a palavra-verso, em sua dimensão formal e simbólica, a traduzir ora um intimismo discreto ora uma alteridade imanente, ambos conduzidos pela concisão e contenção líricas e pelo experimentalismo que definem a lide lírica da escritora.
Brota da poesia de Helena um moto ascendente, ainda que fruto paradoxal de uma tensão entre retroação e transgressão, que parece direcionar um ente aprisionado num corpo onde não cabe o Ser desejado. Daí a pulsão pelo movimento - ora retroativo, quando a memória constrói o sentido, ora transgressor, quando as emanações da exterioridade incitam ao alumbramento que a circunscrição no corpo físico parece impedir - e a busca pelo instrumento de navegação que permitirá que o silêncio da existência contida se rompa e desabroche: a palavra poética.
(...) Assim, da poesia de Helena Parente Cunha, emergem signos de deslocamento e imobilidade, numa tensão antitética quebrada paulatinamente durante a própria evolução de seu fazer poético, que, liberto das injunções às quais são submetidos o ser/ente e a criação, alcança, gradativamente, a capacidade de se evolar, perdendo a carnadura plástica (do corpo em frente ao muro) para ganhar a volatidade musical (dos cantares espalhados por recantos plurais) do Ser. Daí a amplitude gradativa dos espaços por onde o Eu-Lírico circula (o quarto e o muro que
cercam, o mar que amplia horizontes, o outro lado que revela o desconhecido, os cantos e cantares que reafirmam a voz conquistada) e a tensão constante entre palavra e silêncio, num jogo dialético à moda hegeliana, da qual irromperá o Ser-síntese que se sabe e que pode, portanto, saber o mundo e os outros, e, consequentemente, ver-se na relação especular com o outro e com o mundo.” CHRISTINA RAMALHO
O CAMINHO DE LONGE
Ao sair
coloquei novamente sobre os ombros
o meu nome
e atravessei o portão.
Olhei para trás
sem querer assumir a distância.
Mas em frente
eu estava
- longe –
PERTO
Daqui
desta janela ocidental
da minha rua das laranjeiras
entre os cabelos assustados
dos dois coqueiros frente ao meu prédio
daqui
junto ao convite maternal das mangueiras
daqui
deste instante brasileiro
que se move aberto
pela minha janela carioca
daqui
da minha verde verdade tropical
eu vejo
sim eu vejo
daqui
a limpidez dos cedros
e a serenidade inequívoca dos pinheiros
plantados no outro lado do dia.
BUSCA (2)
Buscando definições
viajei dentro de espelhos
e pelo fundo do mar
e pela borda do abismo
e na fímbria do horizonte
Só foi buscar e perder
Reflexos de imagens simuladas
moles caminhos molhados
riscos em fundo de perigo
intricados de fios no limite
Mas ganhei no que perdi
Do indefinir do espelho
do inacessar do mar
do indecifrar do abismo
do reviver tanto fim
sem final
O CAMINHO DE LONGE
Ao sair
coloquei novamente sobre as ombros
o meu nome
e atravessei o portão.
Olhei para trás
sem querer assumir a distância.
Mas em frente
eu estava
— longe —
TULIPAS
Na letargia daqueles dias
sem surpresas nem segredos
partimos à procura
de campos
em ondulações de tulipas
E fomos na certeza
da profusão esperada
de cores e corolas
em recessos de concha
para invisibilidades
e fecundações
Chegamos cedo
ou foi depois?
Ah nossas esperas
de primaveras
e reviver de viço
e avidez de esperar
o inesperado
de quê em quando
CUNHA, Helena Parente. Caminhos de quando e além. Poesia. Diálogo com poemas de Fernando Pessoa. Rio de Janeiro, RJ: Edições Tempo Brasileiro, 2007. Capa Vera Parente. 191 p. 14x21 cm. ISBN 978-85-282-0142-0 Ex. bibl. part. Salomão Sousa
“Este é um livro denso de emoções e de sentimentos, em cujas páginas, a poeta Helena Parente Cunha, como uma pródiga e excelente perdulária, esbanja amores e paixões.” MURILO MELO FILHO
ESTAÇÃO 1
O que escrever neste breve instante que impõe do que não disponho?
No oco rumor desta página, em palidez de pergaminho ou cera
ou lisa claridade da tela e das teclas,
como dizer do dito que se disse,
no já vivido que não se viveu?
As urzes estão à espreita do milagre.
Eu? Sim, também aguardo milagres e aberturas de fronteiras
neste não haver tempo para pensardes nem esperardes o quê.
Tudo de todos os minutos em precipício a meus pés
e no mais alto de vosso redor depois de além.
0 lado mais antigo do abrigo começa onde é ou foi o arco-íris,
mas as novas cores esguicham neste jato de luz perfurando
as sombras que se diluem pelo brilho mais.
Ele que traçou as linhas do meu mapa e da minha mão,
decretou minhas conjunturas e adjacências.
Minha decisão é cumprir o que me foi do que me for confiado,
não posso falhar.
Emissário de um rei desconhecido
eu cumpro informes instruções de além
Medo não tenho. As medalhas me brilham no peito.
Decretos em pergaminhos desenrolam mensagens de quando.
Rolos de papiro e papel couché, telas de videoclipe, o que
houve, meu rei? Perdi a conexão.
Não leio as tábuas da lei que me mostras,
hieróglifos se desenham incógnitos.
Se não sei ler, senhor, como seguir teus estes tais comandos?
Esfinges me inscrevem nos olhares parados em pedra.
Abre-me as portas de adentrar a pirâmide,
dá-me a senha para as decifrações,
dá-me a chave secreta dos subterrâneos.
Saberei o que queres e cumprirei teus decretos.
Não, não me fales na língua dos deuses,
sou simples mortal em busca da imortalidade.
Este mistério me atinge e fere as cores do meu estandarte.
Por que não saber o por quê do quê do ferimento?
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CUNHA, Helena Parente.Cantos e cantares. Poemas. Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro, 2005. 110 p. 14x21 cm. ISBN 85-282-0129-5
Ex. bibl. part. Salomão Sousa
GIRASSÓIS DE VAN GOGH
para Zahidé Lupinacci Muzart
Encurralados
no jarro da sala agonizante
os girassóis se crispam
e se despedaçam
entre explosões de amarelos
Incendiando Jerusalém
os homens-bomba
estouram seus rins
e as vísceras do rei
e os pulmões dos marechais
As paredes do Trade Center
se desintegram
sobre os inesperados ombros
das crianças
detonadas na Xexênia
e em meio às labaredas antecipadas
na perplexidade
dos girassóis em chamas
MONA LISA (2)
para Florisvaldo Mattos
Entre ângulos agudos e elipses
e diagonais e espirais inscritos
no aglomerado de sons
anteriores ao som
paralisado
na minha e na tua e
na deles e delas boca
nós nem sabemos perguntar
os para quês e os como quais
das altas ressonâncias
e do silêncio recolhido
no infindo sorriso da Mona Lisa
CAJUEIRO (2)
para Ricardo Barberena
Sob as ramagens redondas
na placidez da curva até o chão
eu me sento e me sinto
Sem pensar
sem perguntar
me faço folha e raiz
e me planto sem desígnios
na intensidade da terra
Sou haver em meu estar
apenas unissonante
CUNHA, Helena Parente. Corpo no cerco. Rio de Janeiro, RJ: Edições Tempo Brasileiro; Brasília, DF: Instituto Nacional de Livro, Ministério da Educação e Cultura, 1978. 123 p. 13,5x18,5 cm. Ex. bibl. part. Salomão Sousa
“A novidade do início e a tomada de consciência em relação a problemas da poética de hoje — eis o que Helena Parente Cunha reúne neste livro já por isso sedutor. (…) A poesia de Helena, conscientemente experimental, tem que ser apreciada sob esse intrigante aspecto. ” EDUARDO PORTELA
floresço
frutifico
enraízo
mas não sei em qual chão
me hei de plantar
*
no desmentir
de cada mito
me tomba um véu
no desencontro
de cada aurora
rompo um pedaço
no que refaço
cada verdade
mais me desfaço
CUNHA, Helena Parente. Maramar. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro; Brasília, DF: Instituto Nacional do Livro, Ministério da Educação e Cultura, 1980. 120 p. (Coleção Tempoesia, n. 22) 14x21 cm. Apresentação: Josué Montello. Ex. bibl. part. Salomão Sousa.
“A experiência dos poemas anteriores alargou em Helena a intimidade da palavra que amadurece em poesia.” JOSUÉ MONTELLO
ROTA
venho de incontidas ondas
lançadas
em litorais adormecidos
lembro passos
que ainda não passei
esqueço
a futura esteira
que as ondas
de onde vim
sulcarão
sob aqui
emergindo lá
parto
das praias aonde não cheguei
SULCO
no silêncio
da minha carne
profunda
riscas o sulco
onde me exilo
a linha que me fecha
ao limite do corpo
riscado
cortas o arco
que me cerca
e cavas
além do sulco
fundo
a palavra onde existo
sem risco
CUNHA, Helena Parente. O outro lado do dia (Poemas de uma viagem ao Japão). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995. 100 p. 13x21 cm. ISBN 85-282-0072-8 Capa: Elizabeth Lafayette. Textos de apresentação: Muniz Sodré, Pedro Lyra. Ex. bibl. part. Salomão Sousa.
“(…) ao contrário dos poemas tipicamente circunstanciais, estes escapam ao seu imediatismo pelo evidente sentido de unidade e ambição de permanência : explorando o mesmo tema — a civilização japonesa, em sua paisagem, seus tipos, suas tradições — a autora confere ao conjunto de poemas aquela organicidade interna necessária á toda coletânea que se pretenda mais que uma simples reunião de textos anteriormente produzidos.” PEDRO LYRA
INTEGRAÇÃO
Os arrozais amadurecem
sob os chapéus dos velhos encurvados
no arco frio do tempo.
A água o vento
a terra a luz
que impregnaram os grãos
se aguardam
nos goles quentes de sakê.
Inteiros.
SUPORTES
O país flutua
ao balançar das ilhas
trepidantes de guizos
(o líquido palpitar
na contingência da
onda).
O país flutua
ao fluxo das cores
transbordando flores
(os perplexos lagos
abertos
na espessura dos
jardins).
O país flutua
ao fácil despentear-se
em mando dos arrozais
(emanações de seiva
molhando
as franjas dóceis no
ar).
O Japão flutua
no fluido espelho do tempo.
IDEOGRAMA
Do entrançado destas letras
saltam as palavras
que me escorregam das mãos
e se perdem entre as coisas.
O traço é um desenho sempre novo
de antigas flores
que não sei.
Estas letras
convertem o vasto espaço
em pensativas linhas curvas.
No entrançado
destes traços
o mundo é mais e se desenha pleno.
Página preparada por Salomão Sousa e publicada em janeiro de 2008. ampliada e republicada em dezembro de 2012. Ampliada e republicada em agosto de 2015. Ampliada em fevereiro de 2017
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