FURIO LONZA
Nasceu em 1953, na cidade de Trieste, norte da Itália. No Brasil desde 1958, morou em São Paulo por quase quarenta anos e foi viver no Rio de Janeiro. Foi editor da revista underground Chiclete com banana entre 1987 e 1992, e mais tarde atuou como jornalista em diversos órgãos de imprensa. Tem dez livros publicados, entre eles As mil taturanas douradas (melhor livro de 1994, prêmio FNLIJ); Quarenta anos de rock (3 vols., 1995); e Como enlouquecer seu filho (1996), todos esses pela Editora 34.
Extraído de
POESIA SEMPRE. Ano 8 – Número 12 – Maio 2000. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Ministério da Cultura, Departamento Nacional do Livro, 2000.
Artaud
No próximo círculo, na última volta
do parafuso, o homem deverá
se reconciliar com o excesso, o homem
é feito de excessos, exageros
rupturas, delírios e paixão
— o mundo dos alucinados, pestilentos e
loucos varridos, envenenados pelas verdades
intoleráveis escondidas por detrás do objetos
e das palavras, do maníaco, do bestial, do bubônico
— o mundo não precisa de cúmplices
mas de um trem descarrilado, de um suicida
à beira da alma, de paradoxos, de
carícias extremadas, de um lânguido umbigo luminoso
de uma axila picada por um sonho ou
uma chinesa massageando a próstata de um sifilítico
de homens terminais e asfixiados e tuberculosos
estertorando cruéis cânticos mexicanos
— o homem é feito de recusas orgânicas
de um jorro incessante de imagens e da eterna
possibilidade do espetáculo
de uma respiração precipitada e múltipla
e uma musa sibilina rompendo a aurora e a fome do mistério
relâmpagos visuais e da totalidade de
feixes passionais da física primeira sobrepujando
indícios, deveres e princípios
— o mundo subterrâneo animal e soturno pois
os monstros se fazem com a noite e
de mil coiotes uivando, de dez mil
hipopótamos copulando nos pântanos da razão
do desequilíbrio tremendo que vem dos
cem mil sinos da agonia batendo
nas torres do álcool, nada de soluções
sonâncias, equivalências, harmonia
sutilezas, terapias ou efeitos-tampão
— papel e urina, isso sim, textos & testículos
monólogo e caos, ternura e gumes, místicos
e visionários, órfãos & bastardos
bonachões, inconsciências tirânicas e divinas
amontoados irrevogáveis de células e neuroses seminais
espasmos e insanas florestas de horror
o avesso, o obsceno, o mênstruo cósmico
e o blasfemo peido na cara de Deus.
Balada do peregrino
E falemos de pão, minha cara
meu único polo místico nesta
cadeia cíclica de tempo & espaço
saindo cricante, crustolante
quebradiço do forno em brasa
— útero siciliano da musa em febre
ou mole como o pão do deserto
um pão árabe feito às pressas em panelas negras
ou o trigo do Egito, às margens
do Nilo, um pão ao avesso
castigado, vulnerável, escuro
& o drama clássico da fome.
Falemos de pão, minha cara
o único elo que consegue unir a terra
ao corpo pênsil do desconhecido
que forrou o estômago de palestinos & turcos
& gerou fetos e ritos antigos como a Historia
— o pão da noite, o pão ácido, o pão branco
sua massa oculta a beleza & a morte.
O tempo é o mesmo
minha mulher dorme, meus filhos dormem
coiotes circundam a tenda uivando
e eu sei que, pela manhã, minha tribo
será impiedosamente massacrada pelo inimigo.
Página publicada em maio de 2018
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