ÓTICA
Do viveiro,
as grades separam
a liberdade
do mundo exterior.
No entanto,
existe
a liberdade
de ser livre,
às mazelas
deste mundo,
ao minúsculo arquipélago
dos pássaros
em cativeiro.
Quando as portas gradeadas
são abertas,
ao solitário arbítrio,
estão mortas
as tribunais sequelas
da vida interior.
(De Surrealismo, 1995)
O GATO
O gato em si, o gato é
no espaço em que se vê
o gato que habita o gato
emoldurado pelos olhos
que decifram a forma gato
no gato objeto do poema;
o gato humano no beiral
da cama onde o gato é.
Ser gato é forma definida
ao gato, então perplexo, que reflexos
de outros gatos, demonstra gatos
ao entendimento curioso
do gato ser.
Somos gatos ao gato é
assim como o gato não sabe
que é gato e, por não ser gato
ao espaço de meus olhos
que os vê no gato do poema,
é concepção de forma
sem estrutura humana
no beiral da cama
onde o gato é.
(De In Oficina - Cadernos de Poesia, 1997)
OFICINA – cadernos de poesia 29. Rio de Janeiro: OFICINA Editores, 2001. 108 p. 23 cm. Ex. bibl. Antonio Miranda
NINGUÉM
Ninguém vai ao enterro do povo
que morre todo dia e não choca
que nem ovo.
Ninguém reza pelo povo dos prazeres corroídos
na consciência estulta do pecado.
Ninguém na vida, exceto a morte,
transpõe oposição ao fato pobre
que nobre, à gente,
são lágrimas que correm.
Ninguém, à vida, com a morte
se deprime em tarde úmida
onde jaz a vida,
feita morte,
na clave que, aos pés, desloca
o sonho popular isento à sorte.
Ninguém ao povo, sente a saudade
espalhada na cidade em cortejos
de molambos.
Ninguém olha na vidraça quando
passa o povo inerme, solitário,
sem graves arrepios
de desejos de melhoras
que nem pó de areia louca.
Ninguém gosta de curtí-lo morto.
Os velórios são orquídeas
que exalam a massa informe.
São névoas insana que amorfas
consomem, a cada dia, o vazio
dos instintos ou cada fim de semana.
Ninguém! Ninguém vai. Não fica do povo
alguma imagem
a ser o cheiro seco
da estranha sacanagem.
TORMENTAS
Cada um de nós se morre um pouco
à luz que afugenta os olhos não maduros
é algo que nem fogos que não queimam
e mãos contorcem dores aos dedos loucos
A sombra que não passa à vida estática
sente o tempo já passado e, futuro logro,
deixa de viver a hora amada
sem ter vivido a vida que não pára
Vestido de veludo ao sol que mata
sem ramos destas árvores que fecundam
o aroma das estradas sem caminhos
fazendo um fim ao íntimo que vislumbra
Cada um de nós em nós em nós se morre um pouco
ao logo que ofusca a luz reinante
do brilho das escunas aos peixes ávidos
de outros peixes que transitam fundo.
*
Sem mesmo ter vaia o olhar infante
o risco da nevada é ópio puro
que desintegra o corpo não amante
na ilusão de ser outro semblante
Quem vale da vida o termo exato
não vive, da passagem, a palavra enxuta
que sai como vocábulo de um susto
à frase antes nunca terminada
As pedras que não rolam aos pés descalços
não andam por impulso ao ser sozinho
é como escrever cartas inflamadas
sem ter papel ou mesmo pergaminho
As dobras das entradas são estudos
curiosos de saber o que não há depois
e como um que outro vem seguindo
fazendo de um só tornar-se dois
*
Quem dera a lua, redonda namorada,
descer seu brilho à prata das lagoas
crestando à límpida jornada
os atos não humanos das garoas
Da noite as estrelas são desvios roucos
que atalhos surgem ao piscar das luzes
fazendo do olhar algo barato
como a luz que se acende antes do fumo
Cada um de nós em nós se morre um pouco
assim que letras concebida viram frases
e o amor se integra à frase inteira
que nem corpos flamante e queimados
Ao fim desta tormenta fica o sábio
que sabia o sabiá ao canto escuro
só fala que nem voz de velho louco
que cada um de nós em nós se morre um pouco
*
Página ampliada e republicada em novembro de 2022