FERNANDO MARQUES
Jornalista, professor universitário, poeta e compositor, nascido no Rio de Janeiro em outubro de 1958. Temartigos publicados em jornais e revistas de São Paulo, Brasília e Rio. Mestre pela Universidade de Brasília com trabalho sobre o humor nas peças de Nelson Rodrigues, vem preparando um estudo sobre o teatro musical. Publicou o livro de poemas Retratos de Mulher (Varanda) e é autor das canções do show Samba do Amor Omisso (2001) e da peça Últimos.
MARQUES, Fernando. Zé: peça em um ato; adaptado em verso e canções dp Woyzeck de Georg Buchner. Ilustrações Andréa Campos de Sá. São Paulo: Perspectiva, 2003. 135 p. Inclui as partituras das música ao final do livro. Patrocínio Brasil Telecom. Col. A.M.
CENA 1 – QUARTO (fragmento)
(Quando os espectadores começarem a chegar, os músicos estarão
executando a Canção de Maria, sem letra. O cenário mostra o quarto
do Capitão. Ele está sentado numa cadeira; Zé lhe faz a barba. A
canção se encerra.)
CAPITÃO
- Calma, José, calma!
Assim fico tonto.
O bigode pronto
em tempo tão curto
não vale uma palma.
Calma, homem, calma!
Ganhei dez minutos
exatos, enxutos.
Pra que tanta pressa?
Mais vale é a alma...
Pensa, José, pensa:
só tens trinta anos,
tnnta lindos anos,
horas, dias, meses...
A vida é imensa!
ZÉ
- Sim, seu Capitão!
CAPITÃO
— Convém fazer planos.
Deixar de ser tonto,
deixar de ser pronto.
(Bate no bolso, figurando dinheiro. Muda de tom; agora pensativo.)
Temo pelo mundo
e seus muitos enganos.
Eu tremo ao pensar
no trabalho eterno!
O trabalho eterno
que logo se esfuma
e some no ar!
Eu sinto pavor
ao pensar que o mundo
não para um segundo!
Que grande canseira.
E, muito pior,
pra onde, afinal,
tudo isso conduz?
Que peso, que cruz.
Fico melancólico
ao ler o jornal.
- Sim, seu Capitão.
CAPITÃO
— Estás sempre apressado.
Um homem de bem,
um homem, alguém
de mente tranquila,
tem menos cuidados.
(maquinando algo)
Mudemos de assunto.
Como está o tempo?
ZÉ
— Ruim. Muito vento.
(...)
CENA 5 – A FEIRA, TENDAS, LUZES, POVO
CHARLATÃO (desfilando com um cavalo)
— Vamos, mostre seu talento!
A sua sabedoria!
Envergonhe a sociedade!
Esse animal que estais vendo,
o rabo por sobre as patas,
é mais que um simples jumento,
mais do que pareceria:
é sócio de uma entidade
de sábios! Bicho tremendo,
ele até redige as atas!
Professor da academia,
e com ele os estudantes
aprendem a cavalgar
e a usar o chicote.
E um animal doutor!
Um asno que saberia
agir, por alguns instantes,
não com instinto vulgar
mas tendo a razão por mote.
Dupla razão, sim senhor!
(ao animal)
Pense com dupla razão!
O que você faz ao pensar
com a razão vezes dois?
Há um burro entre os doutores?
(O cavalo sacode a cabeça.)
Estais vendo, acompanhando?
Não é um animal, não.
Capaz de raciocinar.
Vamos ver o que depois,
meus senhores, meus senhores,
esse bicho ser humano
mda irá nos exibir...
Um ser humano animal,
uma pessoa, de fato;
ainda assim é um jegue,
uma besta, um pedro-bó.
Vinde, vinde ver e rir.
(O cavalo comporta-se mal.)
Isso, envergonhe, imoral,
és um homem ou um rato?
Esse animal não consegue
ser mais do que areia e pó.
Você foi feito de areia,
de pó, de areia e lodo.
Quer ser mais do que a matéria
de que foi feito, afinal?
Senhores, tenhamos dó!
Não é tão ruim da ideia,
não é insano de todo,
sabe da própria miséria.
Um ser humano animal:
faz contas como um doutor
sem poder contar nos dedos.
Ser humano transmudado,
nos diga, que horas são?
Quem de vós tem um relógio?
Um relógio, por favor!
SUBOFICIAL
— Um relógio?
(Com um gesto grandiloqüente e estudado puxa um relógio do bolso.)
CHARLATÃO (enfático)
— Aqui o temos!
MARIA
— Ser humano transmudado?
Vai dizer que horas são?
(Passa para a primeira fila, ajudada pelo Suboficial.)
TAMBOREIRO-MOR (referindo-se a Maria)
— Que negócio, que negócio
para o Tamboreiro-mor.
Professor do UniCEUB,. Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília – UnB. Compositor.
Jornalista, as primeiras matérias foram críticas de teatro publicadas no semanário José, em 1988, e no Correio Brasiliense, a partir de 1989.
MARQUES, Fernando. Retratos de mulher. Desenhos de Maria Maia; prefácio de Nelson de Oliveira. Brasília: Varanda, 2001. 84 p. ilus. 12 x 20 cm. ISBN 85-87200-04-6
Ex. bibl. Antonio Miranda / doação do livreiro Brito – DF
Os sonetos de Retratos de mulher correspondem a personagens retiradas de peças de teatro, de origens diversas. // Todas as figuras encontram-se nas esquinas de amor e morte, são mulheres trágicas.
Leonor de Mendonça
Jazia em seu palácio, pressurosa,
a esposa de dom Jaime, Leonor.
De seu, só mesmo vida interior,
tristeza e langor na tarde rosa.
A vila onde vivia era Viçosa
mas não a sua vida sem frescor.
Surgiu Alcoforado, e seu amor
perturba a paz de moça virtuosa.
O duque, tão cioso e desconfiado,
percebe a fita que ela presenteara
a semelhante herói que, por seu lado,
nos próprios aposentos da duquesa
sem ver o risco ali se apresentara.
E morre Leonor, tão sem defesa.
A dama das camélias
Profissão, prostituta. Tenham calma:
seus favores sabiam ser diletos.
Prostituta, diziam, mas com alma
na lua escura de seus olhos retos.
A pele clara à noite sob a palma
inspirava salários e sonetos.
Mas onde se separam corpo e alma
sob o contorno dos cabelos pretos?
Paixão de quem não deve, por métier,
se aproximar, teria de ser triste
o seu amor, se é que amor existe.
Foi esta a trajetória da mulher:
das salas onde sobram pompa e pose
às valsas róseas da tuberculose.
Desdêmona
O próprio pai não reconheceria
Desdêmona, a tímida veneziana
capaz de amar o mouro, à revelia
de toda norma néscia e desumana.
Otelo a conquistara, certo dia;
a moça o recebera, pura e lhana.
A mão escura e forte protegia
a pálida patrícia veneziana.
Mas ele, de felicidade rara
no amor como na guerra, despertara
a inimizade vil do subalterno
que, lúcido, pretende destruí-lo
minando a paz daquele amor tranquilo.
Termina em morte o que era amor eterno.
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Página ampliada e republicada em fevereiro de 2023.
Página publicada em março de 2013
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