eu ontem passei o dia devorando borboletas
bichinhos de todas as cores, formas e tamanhos
as pequenas engolia por inteiro, sem nem encostá-las nos dentes
as grandes ia pelas patas e depois mastigava o corpo
(adoro aquele crock, crock, crock, sabe?)
por fim chupava suas asas multicores, para ver se me coloriam
0…a língua
quando, noite alta, fui pro quarto dormir
ainda podia senti-las, voando dentro de mim
piruetando pelo estômago, pelos rins...
algumas, mais espevitadas, zanzando em minha cabeça!
mas, confesso, que não consegui pegar no sono
não por causa delas, apesar das cócegas que me faziam
é que logo que deitei ao teu lado
percebi que você passara o dia devorando aranhas
e agora me olhava de um jeito intenso e faminto
enquanto me envolvia com pernas
longas... finas... como teias
sem possibilidade de fuga
espinhos dentro de mim
eu trago espinhos dentro de mim
rosa invertida e deformada
por fora a seiva corre contaminada
por dentro pétalas já se abrem murchas
raízes que se movem em direção de minha alma
no caminho apertam meu coração, esmagam-no!
não, não sinto o vento em minhas folhas escondidas
nem gozo da chuva que escorre nas entranhas expostas
tenho sede, tenho fome, mas tudo é claro e perfeito
sei que o sol está lá fora e a tudo ilumina
e eu existo, apesar de tudo que contemplo
e eu existo, apesar de oculto em silêncio
sei também que, um dia, algum pássaro ou larva
irá ferir meu caule torto
o que me encherá de ar e de luz
até ser, simplesmente, insuportável
Página publicada em março de 2018