FELIPE FORTUNA
Fortuna nasceu no Rio de Janeiro, em 1963. Mestre em Literatura Brasileira (PUC/RJ), é poeta e ensaísta, e vem colaborando regularmente na imprensa brasileira. Publicou Ou Vice-Versa (1986), Atrito (1992) e Estante (1997), poemas; A Escola da Sedução (1991) e A Próxima Leitura (2002), crítica literária; Curvas, Ladeiras - Bairro de Santa Teresa (1997) e Visibilidade (2000), ensaios. Traduziu a obra integral da poeta francesa Louise Labé no volume Amor e Loucura (1995). Diplomata, atualmente trabalha em Londres.
Em 2005, publicou um novo livro de poemas, juntamente com os três anteriores, no volume Em Seu Lugar (Editora Francisco Alves). http://www.felipefortuna.com
>>> Leia resenha: FELIPE FORTUNA POSTO EM XEQUE - sobre seu livro "Esta Poesia e Mais Outra - crítica literária", por Antonio Miranda
Veja também: POESIA VISUAL DE FELIPE FORTUNA
FORTUNA, Felipe. O Mundo à solta. Poemas. Rio de Janeiro: Topbooks, 2014. 108 p. 15,5x23 cm. Ilus. ISBN 978-85-7475-237-2 Capa: Miriam Lerner. Ilustrações: Mariza. “Orelha” do livro por Silviano Santiago. “ Felipe Fortuna “ Ex. bibl. Antonio Miranda
Constituído e destituído de páthos, O mundo à solta leva o leitor a sobrenadar próximo à rosa do povo, enquanto veste e protege o poeta com o escafandro da vida diplomática. Apaixonado e ambivalente, O mundo à solta coloca Felipe Fortuna entre os melhores poetas da atual geração de indignados. SILVIANO SANTIAGO
O MUNDO GIRA
Excomungados, banidos.
Escravos e deportados.
Refugiados, sumidos,
expulsos, expatriados.
Colonos e perseguidos.
Emigrados, deslocados.
Imigrantes e detidos,
apátridas, exilados.
Nómades e transferidos:
papéis desaparecidos,
mãos e pés extraviados.
Todas as raças se exportam.
Todos os credos comportam
ofendidos e humilhados.
O DRONE
O drone chegou. Seu voo de silêncio (a
menos que atravesse
o céu escarlate) inverte o mundo:
não é a bomba cega
que pulveriza o prédio e a fuga
- é a máquina que acerta em cheio
e vai e volta a toda
com sua missão de rapina.
Avião crucificado. E voa sem sacrifício
sem kamikaze
sem aguardar combustível
e sem mãos grudadas
aos batimentos cardíacos.
Seus olhos deslocam a vida.
Seus telescópios mergulham fundo
no corpo
que carbonizou: não houve nem silvo
nem ar.
O drone lança asfixia,
está por trás, está
por cima, está no filme assombrado
que o revela, na sala refrigerada.
E quem o comanda
(sem turbulência
sem vento de cauda
e sem ascensão)
pode desligar os motores (findo
o expediente)
mas pode também
(igual ao drone)
sorrir em silêncio.
De EM SEU LUGAR (2005)
Quase um perfeccionista
Ao andar pelas ruas
e palpitar à luz do dia
(como quem não consegue
chegar à própria casa, dizer
seu nome ao guarda, encontrar amigos
na cidade em que nasceu),
ele insiste e continua.
Sua mão de pele esparsa se contrai,
cada veia atinge em cheio
as suas expressões. É forte,
dizem os médicos, a sua
compleição. E a alma é robusta
como um lilás no meio do lago.
Ao viajar, transporta poucas roupas
dobradas com a emoção que insiste.
Ainda quer superar uma doença
cujo nome esqueceu
e um jardim em que não sabe pisar.
Quando passeia, as crianças, as mulheres
também, os pais e maridos reconhecem
que por ali vai uma pessoa comum e virtuosa,
quase um perfeccionista.
Em seu lugar
Arrumo livros
como lembro os rostos,
de memória. Limpo livros
a me esgueirar
por estantes e frestas,
esgrima. Depois
volto a flagrar as lombadas
queimadas de luz
e de gordura dos dedos
(o corpo continua a penetrar
cada leitura).
Ali estive, aquele ali fui eu,
aqui me reencontro,
estranho antes e depois.
Ninguém fala o título:
ele mesmo
soletra a sua inclusão
e se perfila, agora convocado.
Daqui observo, perto e de rapina,
o livro que li e volta para a fila:
sua lombada erguida frente
à dúvida, que não termina.
De ESTANTE (1997)
OS DOIS
inHUMenOUTRO
Augusto de Campos
Como se fossem raízes
movendo-se devagar
em lençóis incandescentes,
dois corpos se comunicam
— porosidade do fogo,
evaporação do vinho.
Dois corpos, como se fossem
descobrir no chão da pele
a duração da nudez.
(Quando dois corpos se abraçam,
dois corpos abraçam tudo).
DESFILE
Dentro do vestido é a forma
que vincula o corpo
ao seu espa$ço:
quando dança, o corpo é partner
da luz sedosa do tecido
e das franjas e de seus ritmos.
Por onde passa aquele corpo
ninguém cabe: radiação
que atrai e anula outro corpo.
0 vestido que o cobriu muda a postura
de quem o viu e encontrou
em vez do corpo, a teia que o prendeu.
De
Felipe Fortuna
ATRITO
poemas
[Brasília]: Alarme Editora, 1991
TETRIS
A vida aparece aos poucos:
sua construção de acaso
não decifra o dia seguinte.
Bloco sobre bloco se executa
a obra que corrói o corpo.
Nós somos pouco.
Jacarta, 1992
ECCE HOMO
Coisas estranhas:
o nome de quem acorda de madrugada,
a vertigem de quem trabalha como balconista,
quebrar o jarro, e entender os estilhaços,
escapar da morte e culpar os faróis altos,
negar a existência de Deus, a perfeição do ovo,
e amar, em segredo, escritores incompatíveis
que ironizaram sobre o mesmo tema,
e só ter remorsos quando se perde dinheiro,
e dormir na mesma cama, os dois, várias vezes.
Coisas estranhas:
humanas, demasiado humanas.
FORTUNA, Felipe. A Mesma Coisa. Poemas. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012. 83 p. 14x21 cm. ISBN 978-85-7475-214-3 Inclui 3 longos poemas: A Mesma Coisa. O Suicida e Contra a Poesia. Col. Bibl. Antonio Miranda
A Mesma Coisa
(fragmento)
Eu sou igual a um anagrama. Meu
indeciso amor a Roma me
levou a confundir a imitação. E vou
pelo caminho bifurcado, que me basta
e me provoca.
Eu me repito
mesmo
quando não copio.
E ó mesmo
acontece
quando me repito: precipício
arremessado ao precipício.
Eu sou o que sou, responde o Criador.
Portanto: não há limites. Esse infinito
se fez das coisas que já foram. Começarei
de novo, mas apenas começarei, porque
nada é novo para os que sabem o que ainda vem.
(...)
II BIENAL INTERNACIONAL DE POESIA DE BRASÍLIA – Poemário. Org. Menezes y Morais. Brasília: Biblioteca Nacional de Brasília, 2011. s.p. Ex. único.
Cabe ressaltar: a II BIP – Bienal Internacional de Poesia era para ter sido celebrada para comemorar o cinquentenário de Brasília, mas Governo do Distrito Federal impediu a sua realização. Mas decidimos divulgar os textos pela internet.
Os espaços
Abro um armário que não tem Deus
e, portanto, serve para pendurar
as roupas daquele dia. No dia
seguinte, o mesmo armário demonstra
que será assim, sem Deus, embora eu me vista.
Os dias passam de portas abertas ou fechadas
e roupas sem providência me cobrem.
Vou pela rua e me segue o espaço desse armário
e não retiro do bolso nem carta nem mesmo
o peso da camisa tão necessária.
Quando me dispo, a roupa volta ao armário?
Diante das portas, nem sempre decido
– e o que faço é deixar ou não pendurada
a forma do meu corpo, que preenche
a nudez que um dia também pendurarei lá dentro.
Cupido em ação
Você é o que todos esperam:
um deus portátil
de bar em bar.
E passional de arco e flecha,
talvez um guerreiro sensível demais.
Você convence. A força do amor
é destrutiva, não interessa
se estamos juntos ou apenas
com sua carta na mão.
Epifania? Lembranças? Tudo são rastros
que levam a você, farto de recolher
as almas sucumbidas e os corpos sem juízo.
Amor serve para tudo, e você, deus ordinário,
é onipresente, e gera o pânico
de uma roupa sob medida
vendida em liquidação.
Você tornou o nome das pessoas
mais violento,
e agora persiste o acaso dos encontros
atravessados por sua arma em punho.
De que maneira, perguntam todos,
podemos um dia abençoá-lo?
Você afinal é perfeito, e combina
a loucura com o modo mais esmerado
de estar bem perto dos outros
e de ser aceito.
A data boquiaberta
Às vezes meu nome estranho
leio assim
Fortuna, Felipe. (1963- ),
como anagrama da morte.
Devo considerá-lo um hiato?
Aquele espaço, um vazio em que só cabe
a vida que se acaba e risca um número?
Tudo parece rir, o sobrenome
que hesita entre a sorte, o acaso e o dinheiro,
o nome de perfeito cavaleiro e imperador
e a data toda ímpar (noves fora? um)
a indicar nada perfeito. Número primo.
Mas o que persiste: qual será
o meu número final?
Quisera, como Bandeira, Manuel. (1886-1968)
inverter dois números, transferir-me de século,
e morrer em 2036 sem chegar aos oitenta.
De qualquer modo (eu sei)
assim como fiz tantos poemas
não serei autor da data que não quis.
Página publicada em agosto de 2009; ampliada e republicada em abril de 2010; ampliada e republicada em maio de 2014. Ampliada e republicada em janeiro de 2015. Página ampliada e republicada em abril de 2019.
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