TERCEIRO MILÊNIO
Rasguei meus versos amigo Bocage.
Mas não acredito na eternidade.
Minhas vísceras deixei
Na mesa da sala de jantar
Como um troféu.
Agora entro na vida como cheguei desamparado
e nu: sou descendente de minhas angústias
e o que faço não me interessa
nem me serve de alguma certeza.
A única certeza é o trem
que flutua em minha direção.
O resto é o cheiro da graxa e do olé
que escorre do meu corpo
e a beleza do soneto aberto sobre a mesa
no fundo do meu peito
a bater sem parar.
9.11.99
O BÊBADO E A METÁFORA
O bêbado viu a lua na poça d'água.
Ele se viu lindo e imortal.
Era um bêbado dançando numa corda que se estendia
entre o mar e o céu.
O bêbado amou sua fantasia de arlequim
e viu sua alma bêbada dançando sobre a cidade.
Nem percebeu que ele era uma ilusão,
puro delírio de um poeta
e mergulhou em busca de sua beleza
e não se encontrou do
outro lado da vida.
CARTÃO DE CRÉDITO
Há contas a pagar por roda vida.
Esgotei meus créditos na direta
razão de ser ausente.
Uma barata esmagada no vão da porta.
Não sou eu desculpem-me,
mas resta ainda a sensação de inseto
que corre nas minhas veias
e nem percebi que meu cartão de crédito
perdeu a validade.
9.11.99
A CARTOMANTE
Meu caminho está fechado
de punhais. Afiados dentes
de hienas que me espiam.
Riem de minha morte e
se banqueteiam com meus destroços.
São sete esquinas a minha vida:
alguém me espreita no beco
da noite. Apenas um número
me salvará de suas teias
nem a cana e nem a mosca
me salvam da certeza do amor
da dama vermelha da janela azul.
Extraídos de VOZES NA PAISAGEM. ANTOLOGIA DE POETAS BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS I.
Org. Waldir Ribeiro do Val. Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2005.
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Seleção de
WALMIR AYALA
publicada originalmente na
REVISTA DE CULTURA BRASILEÑA
N. 39, JUNIO 1975 pela
Embaixada do Brasil na Espanha
VESPERAL DO SONHO
O essencial não é
construir na amurada
o casto edifício de suicídio
nem registrar planos definitivos
para a geração pacificada
ou plantar melancolia no cemitério.
O essencial não é
morrer na vida
e ser pasto de mistério
mas penetrar no reino das palavras.
POEMA
Antes de anoitecer quero regressar
Ao bosque onde ficaram meus passos
e sentar-me na terra como quem não
vive o tempo de primeiro amar. E
na chegada andarei entre o limo da
madrugada passeando o ontem menino
que fui na janela para o nada.
Auras me pentearão com seus abraços
e nada evitará que me instale na es-
trada onde é certo que morrerei do jeito
que a vida me apanhou entre escombros.
CASTRO, Emil. A Margem esquerda – Quase soneto. Mangaratiba, MG: 2016. 50 p. 12x17,5 cm. Capa e diagramação Miguel Arthuro."Edição limitada a poucos exemplares numerados e autografados pelo autor." Ex. Biblioteca Nacional, doação de Aricy Curvello.
A Margem esquerda
O teu modo de existir sem existência
na outra margem esquerda da aldeia
é teia ausente de ausências vagas
como uma vaga no vazio desta vida.
Não te perguntes se existes seres
na afluência do outro lado escuro
pois mais que uma parede te separa
do estranho mundo intransponível muro.
Não te circules na paixão de ser casulo
amando teus tecidos e sedas nos bordados
que antes borboleta te fizeste larva.
Mutante de uma constelação de brinquedos
teu reino será terra de autômatos
onde a existência é magia clandestina.
Metáfora
No caminho, quando a curva morre
de espanto e do brilho da lua,
seus passos vão ficando pássaros
e sou um voo perdido sem destino.
Não me busco nas águas sacudidas
no furo do chão da longa noite
nem no recanto da estrada aberta
pelo farol que rompe a solidão.
Mesmo que se fizesse descoberta
a minha fuga no relincho do vento
escapado das rédeas do cavaleiro,
Eu não me comporia no espaço exato
porque não cabe a noite neste canto
pura canção de náufrago sem poro.
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TEXTOS EN ESPAÑOL
Selección de
WALMIR AYALA
publicada originalmente en la
REVISTA DE CULTURA BRASILEÑA
N. 39, JUNIO 1975 por la
Embajada del Brasil en España
ATARDECER DEL SUEÑO
Lo esencial no es
construir en el muro
el casto edificio del suicidio
ni hacer planos definitivos
para la generación pacificada
o plantar melancolia en el cementerio.
Lo esencial no es
morir en la vida
y ser pasto del misterio,
sino atravesar la puerta del sueño
y penetrar en el reino de las palabras.
POEMA
Antes del anochecer quiero regresar
al bosque donde quedaron mis pasos
y sentarme en la tierra como quien no
vive el tiempo del primer amor. Y
al llegar andaré entre el limo de la
madrugadapaseando el ayer niño
que fuí em la ventana abierta al vacío.
Las brisas me peinarán con sus abrazos
y nada impedirá que me instale em el Ca-
mino donde es seguro que morir, tal y como
la vida me retuvo entre escombros.
La NUEVA POESÍA LATINOAMERICANA. Org. Jorge A. Boccanera.
Cd. Neza, Estado México: Editores Mexicanos Unidos, 1999. 310 p.
Ex. bibl. Antonio Miranda
Ser Poema
Ah impossível ser somente vento
nas ruas.
Um sentido de mar no cais
com a ilha na carne.
Ah impossível ser pássaro
passeando plumas na calçada.
Um mastigar verde nas retinas
com o mundo na janela.
Ah impossível ser poema
com tanta gente morrendo.
Em: “O Relógio e o Sono” (1969)
SER POEMA
poema de EMIL DE CASTRO,
traducción de Ariel Canzoni D.
Ah, imposible ser sólo viento
en las calles.
Una forma de mar en los muelles
con la isla en la carne.
Ah, imposible se pájaro
en la vereda paseando el plumaje.
Un masticar verde en las retinas
con el mundo en la ventana.
Ah, imposible ser poema
con tanta gente muriendo.
Página republicada em dezembro de 2007. P�gina ampliada em mar�o de 2020