O mundo não cabe no mar
O mundo não cabe no mar
Ou é o mar que não cabe no mundo?
Entre viver e navegar
Que escrever se não tenho vivido,
e sim, navegado?
Falar das viagens por estes mares
desconhecidos,
dos monstros e anjos que tenho encontrado,
dos seus cisnes?
Poderia dizer sim de tudo isso
e é mesmo o que tenho dito.
Mas seria tão grato viver
nem que fosse por momentos ínfimos...
Se minha vida for este navegar,
esta tentativa de não ser submersa,
qual a diferença, eu pergunto,
entre viver e navegar?
Talvez os mares que desejo
ainda não tenha conseguido alcançar...
E, se um dia eu chegar,
quererei voltar?
Sei que sou de forma alguma
Não confio em desafios
desmedidos e nem acredito
em sonhos tranquilos.
Louca, vago solitária
em mim mesma.
Sei que sou? De forma alguma,
e essa vaga impressão de mim
engana-me, fazendo-me crer
no dia de poder ser una.
Sou nua em poemas em prosa,
mais nua em versos.
Converso sem nexo,
mas converso, e é
a voz que procuro.
Luna
Lâmpada erguida, pequenina e nua,
lá fora misturam-se ruídos.
Esgueiro-me feito cola. Ácida.
Rodas de bilha roçando pedras
úmidas; vento bailando folhas,
o lume do pensamento exato.
Um blues, a garrafa aberta,
cortes de memória repletos indo e vindo,
projetados no branco, voláteis.
Vontade de contornar a noite
e debato-me pelo seu abraço.
Depois, vencido, tomba o rosto
milhares de vezes tombado,
lentamente, em cada cena real,
acordando em cada uma delas,
recomeçando, renascendo uma vez mais.
Como quem se lava n'água fria,
como quem a alma batiza.
Minhas boas persianas
"a persiana pode ser horizontal
ou vertical; você pode regular sem
se levantar da cadeira onde está
Oh sucessão do dia
E da noite"
Joan Brossa
As persianas não mentem.
Sobretudo as claras, quase brancas.
Anunciam a hora exata no dia,
delineiam nossa silhueta à noite.
Atrevidamente lânguidas,
permitem os barulhos todos
e passar, generosa, a brisa.
Jamais se erguendo totalmente,
sem revelar, feito boa noiva,
o que ocorre nos interiores.
E se envelhecidas entortam,
consentimos ainda em abrigá-las,
se bem dominarmos suas cordas.
A vela
A Gerardo Mello Mourão in memorian
Sólida, esqueci de ser eu mesma.
Areia, virei estrela.
Mas estrelas que são,
senão rasgos da luz nova?
Palavras utilizadas, lume.
Palavra, dobrada palavra.
Por minhas entranhas encontrá-la
dita e salgada, cristalizá-la.
Fechar os olhos, lembrar-me do mar.
O mar que lembra o fechar dos olhos
e o riso deles nos nossos ouvidos.
Vela acesa nas noites sonâmbulas.
Deixá-la queimar perene e calma,
transportando o silêncio para além,
prometendo a eternidade na chama
queimando, penitente,
a transmutar-se chama sempre,
queimando por dias, ensolarada
vela de insônia, do sem-nome.
Um homem que, podendo navegar
e cerrar os olhos, o faz serenamente.