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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 




CELSO JAPIASSU

 

 

Nasceu em João Pessoa, Paraíba, vive no Rio de Janeiro. Publicou sete livros de poemas: O texto e a palha [1965], Processo Penal [1968], A legião dos suicidas [1971], A região dos mitos [1979], O itinerário dos emigrantes [1983], O último número [1988] e 17 poemas noturnos [1993]. Em parceria com Nei Leandro de Castro, publicou 50 sonetos de forno e fogão. É o editor de

http://www.umacoisaeoutra.com.br/

 

Celso Japiassu prossegue no itinerário delineado desde O Texto e Palha: o de uma poesia substantiva, enxuta, que em nenhum momento faz concessão a uma visão prosaica da vida ou do fazer poético. Cada vez mais sua visão é voltada para o homem com suas culpas e perplexidades, sua náusea e seu tédio, onde às vezes cabe o pensamento de que “Deus é invenção soturna”. Paralelamente a um embate existencial, o poeta trava uma luta com as palavras.”  NEI LEANDRO DE CASTRO

 

Engenhosamente combina as abstrações do espírito, como saudade, herança regional e experiência vivenciada, com os coloquialismos, as reminiscências vocabulares, os topônimos que deixaram marca e peso no gesto verbal fundador do ser. / Além da fronteira lírica, de amargo intimismo, Celso Japiassu oferece, nos poemas reunidos no subtítulo "Conversações", alguns dos seus momentos mais altos de realização poética”. FABIO LUCAS 

 

 

Veja também: SEMÂNTICA DA CRIAÇÃO / SOBRE UM POEMA DE CELSO JAPIASSU – por ANTONIO SÉRGIO MENDONÇA - ENSAIO



 

Amar

 

Descobrimos palavras e emoções.

Visitamos o fundo das almas

e a essência onde elas habitam.

 Construímos em torno a face da doença.

 

Descobrimos o calibre das armas,

que não foram feitas

para o inimigo.

Elas são o que vemos e pensamos.

 

Um tiro é como o pensamento,

o punhal simples escolha.

Um tiro é uma sela que se monta

neste século obscuro.

 

 

Aurora

 

Dormi entre assassinos,

juntei minha voz ao coro dos mendigos.

 Ouvi o agouro das aves

prenunciando a náusea.

 

Em pleno verão, entoei a musica do inverno

e mergulhei no assombro.

Nenhum disfarce encobriu a voz

que anunciava o grito.

 

Aurora lancinante aspergia a escuridão

de uma noite eterna, absoluta.

Pássaros grasnaram o anúncio

de horror e fome.

 

Nossos estigmas traduziam

a face da doença - a dor

de sonhos massacrados -

 a dor.

 

Dizer 

 

O que vejo não verás tão cedo

nesta terra de dor

e séculos de sangue.

 

Virás depois de mim,

dirás algo de poesia

 que a infância resguardou.

 

Dirás aos que virão depois de ti

o quanto vimos nos portais

onde estivemos prisioneiros.

 

Os outros saberão

quem na selva escura

era inimigo.

 

Onde a morte e a vida

se enlaçavam

em mesma dor constituídas.

 

E que amor era palavra sem sentido,

guardada na morada dos vermes,

mantida nas estantes.

 

 

Conversações com Dylan

 

Retornando de um encontro com Dylan Thomas,

não percebi a chuva nem o vento que batiam

em todas as formas da cidade cinza.

 

Recordei suas palavras sobre a gênese das pirâmides,

as elucubrações sobre seu próprio corpo

e a sina dos que se drogam e se embriagam.

 

Mais tarde, trabalhando num computador,

mergulhei sobre a gênese das palavras,

o pensamento envolto em bruma, indecifrado.

 

Estamos num trajeto onde a chuva

obscurece o rumo e o vento é um chicote

a nos trazer de volta os elementos.

 

Recuso imaginar que tais caminhos

são caminhos sem retorno e sem saída.

Procuro em meu redor e mais alem:

 

Velhas estradas, becos e atalhos

esquecidos e nunca imaginados

trazendo consigo assombrações.

 

Medos antigos tantas vezes visitados,

tantas vezes também compreendidos,

só compreendidos, nunca decifrados.

 

Estivemos tanta vezes juntos, eu e Dylan,

tantas vezes bêbados, incapazes,

tantas vezes assim emudecidos.

 

Pois mudos nos fizemos: era duro

falar sobre as coisas insensatas

tão próximas de nós constituídas.

 

Tantas vezes nos fizemos loucos

apenas para ver onde chegavam

a loucura, sua marca e fantasia.

 

O que vimos e fizemos, os cegos

nos diziam com seus cantos

que era impossível de compreender.

 

Eram cantos fanhosos, irritantes,

sobre fatos que os videntes

jamais teriam visto acontecer.

 

Nesta saga para nós tão suja,

tão confusa em nossas mentes,

tão cheia de percalços rudes.

 

Nesta saga de infâmia e de pobreza,

de miséria, engano e ódio,

de doença e de morte procurada.

 

Foi nesta saga que encontramos

o que nunca haveríamos de entender

sob manto de forma pressentida.

 

Neste enigma tão claro, silente

e calmo, sem filosofia, ausente

de qualquer sentido assimilado.

 

Desconhecemos tudo e tanta coisa

existe em petição de se saber

se vale a pena, simplesmente,ver.

 

Dylan mostrou-me algumas casas

de ópio. O silencio e o fumo

desenhavam suas formas na parede.

 

Ali nos assentamos e choramos

o pranto calmo dos desiludidos

em meio a fumaça,incenso, nostalgia.

 

Não percebemos a chuva que batia

nas paredes da cidade cinza.

Eu e Dylan, ambos tontos, em agonia.

 

E nos embriagamos. bêbados nos vimos

tão próximos da dor e dela alimentando

os cães e os passarinhos.

 

Nunca imaginamos,nós, embriagados,

a alma imunda e dolorida,

que tanto nos iludiríamos.

 

Estivemos cuspindo todo o tempo

 nas águas sujas de um rio

em que iríamos mergulhar.

 

Com tanta espera, enfim, nos dedicamos

a tecer o rumo das estradas

e imaginar a direção dos ventos.

 

 

 

                            De

O ÚLTIMO NÚMERO

Rio de Janeiro: Alhambra, 1986

 

 

 

SALMO

 

Estou sentado numa praça à espera do Senhor.

Ele está atrasado e dos bancos em que se sentam os ricos

caem migalhas de pão que é o seu corpo.

Falta vinho, que é o seu sangue,

mas o vinho não falta em suas ceias.

 

É longa esta espera, como longos têm sido os dias

em que tento me mover no trançado dos espinhos

ou na cruz que me tem pregado.

Não há fuga quando as amarras se misturam

aos braços, às pernas e no pensamento.

 

Não reconheço este sítio onde espero

e observo a fartura em outros bancos

eu faminto, insone, o corpo exibindo suas chagas,

nas escadarias dos templos visitados.

 

Tenho permanecido na vizinhança das árvores

porém longe das sombras ocupadas.

Divido água e comida com os bichos.

À noite, penso que Deus é invenção soturna,

como os pássaros que cercam esta lugar.

 

 

 

EZRA, LOUCO

 

Ezra, numa jaula como um bicho,

silencioso e com o olhar dos loucos,

não pôde exorcizar suas idéias.

Comeu fezes misturadas à urina,

balbuciou o som de uma poesia,

engoliu saliva e pensamento.

 

O próprio pensamento, uma comida.

Julgando-se lúcido como um deus

e perdido para sempre em desespero

como um homem se perde e se constrói.

A nos mostrar quanto é dúbia a natureza,

como silêncio e grito se confundem.

 

Em sua cama, em seus chinelos,

no seu pijama sujo, nos ossos

sob a pele branca e machucada,

reflexões na bruma da loucura,

investigações no fundo das palavras

que permanecerão desconhecidas.

 

Vaiada, imunda, dilacerada alma

dos poetas fugitivos da poesia.

Não entendeu por que sangrava

nem de morte ou solidão.

As palavras, sim, compreendia:

a sua força, tumulto, imensidão.

 

 

 

            VISITA

        

         Homens e mulheres que foram meus amigos

penetram no meu sono.

Estão mais jovens do que eram

na hora de sua morte,

.

 

Têm o mesmo rosto de quando

havia futuro nos seus dias.

 

Esses mortos foram meus amigos.

Conheço-o pelo nome, conheci suas almas

e o ritmo dos seus passos.

 

Agora eles penetram silenciosamente no meu sono.

Trazem algum mistério

que desperta e me convida

para um sono maior e mais profundo.

 

De
O ITINERÁRIO DOS EMIGRANTES
Desenhado por Aldemir Martins
São Paulo: Massao Ohno Editor, 1980

 

“O livro-poema encerra-se, como é natural dentro da historicidade brasileira, dentro da busca insofrida da libertação, encerra-se em “A cidade”, já que a formação urbana constitui o termo final de uma transição. E na poesiaade Celso Japiassu,  assim como na tragédia, o epílogo se denuncia na catástrofe. A cidade não é o ponto final da penúria, mas da viagem. / Sério, sóbrio, o livro traz uma cortante mensagem acerca da realidade brasileira, que se transmuda em experiência individual e límpida manifestação poética.”  FÁBIO LUCAS


XIV – OUTUBRO

Há névoa sobre todos os caminhos
que buscas percorrer, nestes umbrais
de fogo, nesta morada que habitaste
ao tempo de inúmeras jornadas.

Procuraste, atento ao som
de batuques, ao toque de metais
configurar tais dias com palavras
que nasciam e logo emudeciam.

Estuário dos anos, dos semestres
e semanas que a teu lado decorriam,
aos poucos, aos poucos esboçaste
o ser partido que em ti mesmo havia.

No sobressalto desse tempos,
no carrear de rodas, no medo
que nos paralisa,
procuras contemplar tuas retinas

e imaginar em que paragens
encontram-se os corpos mutilados,
sob esta sombra que a todos silencia
marcando o ritmo desses dias.


XXII – A CIDADE

Alguém cuspiu do alto do edifício
e respingou em nós sua saliva.
Lembramo-nos dos outros, daqueles que partiram
conosco e se perderam nos abismos.

Havia restos de comida arremessados
contra nós como se fossem pedras,
como se fossem cuspe, escarro de ódio
contra a sombria face da doença.

Era impossível esconder nossa esperança
(e tentávamos comer nossa vergonha)
porque nosso silêncio aparecia
como se fosse um grito, uma dor ou agonia.
 

O ÚLTIMO NÚMERO

De
Celso Japiassu
DEZESSETE POEMAS NOTURNOS
Rio de Janeiro: Alhambra, 1992.
51 p.  Capa: Walter Pereira

 

 

AURORA

 

                              Dormi entre assassinos,

                   juntei minha voz ao coro dos mendigos.

                              Ouvi o agouro das aves

                              prenunciando a náusea.

        

               Em pleno verão, entoei a musica do inverno

                              e mergulhei no assombro.

                          Nenhum disfarce encobriu a voz

                               que anunciava o grito.

 

                    Aurora lancinante aspergia a escuridão

                            de uma noite eterna, absoluta.

                             Pássaros grasnaram o anúncio

                                        de horror e fome.

 

                                Nossos estigmas traduziam

                                    a face da doença – a dor

                                      de sonhos massacrados

                                              - a dor.

 

 

 

                                   CONVERSAÇÕES  

 

 

                                        UM ÍNDIO

 

                               Apontou-me a cordilheira.

                                Mostrava meu destino, dizia

                   que os astros morrem e os homens agonizam.

                                 Seu olho, arregalado, reluzia:

                               estrela agonizante que morria.

 

                                      Difícil de entender

                                  o dialeto em que dizia.

                                   Os gestos disfarçavam

                                      o medo que existia

                            naquela tarde em Cochabamba.

 

                                O medo e a fome nos unia.

                            Tantos aziagos dias, tanta inútil

                         miséria dos povos a que pertencíamos,

                                 tanta luta, perda, espera,

                                 busca, luto, tanto pranto.

 

                            Poucos nos olhamos pois a fala

                               compreendia. O que dizíamos

                                   trazia susto e esperança.

                                  Éramos surdos escutando

                                     o que o vento maldizia.  

          

De
Celso Japiassu
A REGIÃO DOS MITOS
 
Rio de Janeiro: Folhetim, 1975.  73 p.

Este livro de Celso Almir Japiassu Lins Falcão, ou do Celso Japiassu que conhecemos, é hoje peça fora de comércio, esgotadíssima, que me chegou às mãos pela generosidade do autor, penúltimo de seu acervo privado... Nada mais justo que compartilhar estes dois poemas com o nosso público, para ampliar a série de entregas a partir dos diversos livros, na tentativa de dar uma visão de sua construção poética contínua. “São parte de um núcleo, de um círculo de giz tridimensional, onde se alinham, sob a vigilância do poeta, os elementos do caos”, como nos adverte Nei Leandro de Castro na orelha do livro.   A. M.

 

O DIA DO HOMEM

O dia é como se fora um fruto
esmagado entre tenazes
ou numa prensa
que o suga e que o destrói.

Não se transforma em sumo,
mas no círculo de bagaços
onde porcos se distraem.

Nada próximo do sumo
e sim de fezes
que não são do homem,
nem de ave, inseto ou bicho.

É algo próximo do rosto
de um morto.
Da planta dos pés de um afogado.

 

A LEGIÃO DOS SUICIDAS

De noite, a esta cidade
chegam sons que em sua fúria
mastigam seus ruídos.

Na tarde, além dos partos,
os crimes esperados
e a legião dos suicidas.

A pé, de ônibus, em táxis amarelos,
aproximam seu hálito
de cuspe e de cachaça.

Aqui abandonaram corpos
que entre nós apodreceram
afetando o ar que se respira.

Instalaram-se às margens das calçadas
e abraçam as crianças que ali passam,
transmitindo seu cheiro e sua nódoa.

 

 

II BIENAL INTERNACIONAL DE POESIA DE BRASÍLIA – Poemário. Org. Menezes y Morais.  Brasília: Biblioteca Nacional de Brasília, 2011.  s.p.  Ex. único.

 

Cabe ressaltar: a II BIP – Bienal Internacional de Poesia era para ter sido celebrada para comemorar o cinquentenário de Brasília, mas o Governo do Distrito Federal impediu a sua realização. Mas decidimos divulgar os textos pela internet.

 

Noturno de Copacabana

Telus era um vento que à noite
açoitava os últimos mendigos.
Errava na madrugada, levantava folhas,
o zinco e a poeira dos telhados.
Desenhava em chuva o próprio rastro.

O mês de maio e a memória que vivia
cercavam o pensamento. Essa lembrança
construía um refúgio para as almas,

a faca da chuva afiava o próprio corte
e o frio e a fome perpassavam nossa rua.

Um retrato mirava nossos olhos,
indagava sobre a noite e pressentia.
Milhões de vezes repetia a história
em que o mar e seus segredos
espalhavam sonhos pela praia.

No fim, Copacabana estertorava.
e dormia inquieta no silêncio.
As igrejas e os bordéis esmaeciam,
lembranças apagadas na memória
dos meninos deitados sobre a areia.

O murmúrio dos bares, sexta à noite,
informava uma viagem em que a morte
conduz serenamente os passageiros
e aproxima seu hálito noturno
das sombras disfarçadas nas esquinas.

O vento era esse ator posto de lado
nas frias estações, no sol a pino,
por entre os movimentos da manhã
em que tudo se movia e um só instante
era capaz de revelar perdas antigas.

Soprava entre os corpos nas calçadas
entre crianças doentias e as mulheres
com seus ventres inchados. A dor,
elas carregavam consigo como nada,
nem mesmo como o som de uma palavra.

A chuva era este vento transformado
em lâminas, poças d’ água, inundações
e o medo nas favelas da cidade.
Telus, em desatino, perseguia
os minutos, construindo aquele tempo

Os fantasmas chegavam com o vento.
Invadiam o sono, mostravam suas caras,
acenavam da distância, perguntavam
por que sonhávamos com eles
e ficavam mirando nossos olhos.

A primeira visão era serena,
de olhos verdes conduzindo algum perigo
que só ela pressentia e admirava.
A boca insinuava a despedida
e as mãos faziam gestos de partida.

Depois era a lembrança dos antigos
ocupando a memória enquanto o vento
passava pelas frestas da janela.
Eram ruídos surdos e assobios,
revelações em pesadelo e sono.
A noite erguia suas casas, os lugares
onde acoitava o medo dos ausentes.
A revelação dos fantasmas perseguia
o sono e tudo o que no sonho repetia
o que a vida na morte revelara.

A criança, só, ouvira o som: Copacabana.
E a noite tornava-se vermelha, dolorida
como os crepúsculos sangrentos
que emolduravam as tardes em Recife,
a dizer como é triste a vida humana.

II


Noite. Noite sombria de presságios
com suas revelações contraditórias,
sonhos de incerteza, olhos parados
no escuro de um quarto sem mobília,
nos traços que se apagam no silêncio.

Noite entre os desejos, onde suspiros
refletem entrelaçados nos amantes
as reticências viventes nas palavras,
onde a memória vai se dissolvendo
no passo que aproxima a madrugada.

Um tempo antes da aurora desse dia
marcado pelo som da tempestade.
Em todas as esquinas deste bairro
onde vicejam árvores sem nome
e os objetos noturnos se separam.

O tempo é a forma e a moldura
sobre a praia, a cor dos elementos.
Nele viverão não só seus habitantes
mas também a dor, ressentimentos
e todas as instâncias dos sentidos.

Há calma e assombro nos sussurro
cuja lentidão percorre o mês de maio
e faz desenhos soprando nas areias.
As gárgulas em sombrias esculturas
rasgam a boca em riso e desafio.

Uma forma de mulher também sombria,
com o rosto entorpecido de silêncio,
configuração da morte, ameaça

presente em todo sentimento
em que a vida nela mesma se revela.

 

Sentou-se a meu lado no metrô,
senti seu odor triste, a permanência,
a aura de extermínio envolta com a vida
e com o destino de todos os viventes.
Olhei o rosto, não pude ver seus olhos.

Transfiguração de toda uma existência,
uma velha mirando o fim do dia.
Olhava o entardecer e a escuridão,
o andar da multidão resignada
e sem destino em fila nas calçadas

Nas esquinas oblíquas restam flores.
Na moldura das pétalas fechadas
antigos sentimentos se misturam
e se multiplicam como insetos
escurecendo as cores da paisagem.

Esta mulher de fala doce acaricia
com sua voz sem cor ou timbre
e com palavras repetidas, ao tempo
em que uma criança insone
escutava o som do vento e adormecia.

III


Deserto sem dunas habitado pelos corpos,
pelas águas salgadas, pelo sol que de manhã
atravessa o suor e a sede do verão.
Agora sob a chuva sente o frio, estrangeira
estação nesta praia desnudada e calma.

O mar cresce entre as espumas de sargaços
em frente à Prado Junior, estende até o Leme
a cordilheira branca salpicada nas estrias
de nuvens baixas, próximas das pedras
onde a água espelha a forma de um peixe.

Mas é próximo dos morros que o recorte
deste bairro estende um cobertor
e nele abriga crianças, bêbados, famintos,
a solidão que a vida retira dos seus restos
e oferece como a ceia dos aflitos.
Copacabana fecha-se noturna,
as prostitutas abandonam a praia.
A força deste vento repetindo

uma vez mais e eternamente
o ódio reprimido pelas ondas: Telus.

 

JAPIASSU, Celso.  Poente.   Prefácio: Fábio Lucas.  Lisboa, Portugal: Glaciar, 2021.  60 p.   ISSN 978-989-9090-02-6
Ex. bibl. Antonio Miranda

 

 

Ruidos

A esperança perecera e nada havia no horizonte
A não ser bruma e lodo, estilhaços perdidos
Em paisagens espremidas entre os muros.
Alucinações decalcadas de frutos
Perseguiam rastros de pardais.
Pássaros urbanos sobrevoando os monturos.

 

Adágio

O vento suave soprava cedo nas manhãs.
Depois se misturava à poeira e se transformava em redemoinhos.
Suspendia folhas ao sol, transformava a coar dos horizontes.
Concebia os tons de uma paisagem que se estendia no deserto,
lugares ermos, desconhecidos, vistos em algum sonho alucinado.

Durante as madrugadas havia silêncios cobertos pela noite,
longe da imaginação, segredos nunca revelados.
Caminhos encobertos de plantas, pontos de fuga,
lugares onde se encontravam fontes,
início das viagens, sons agudos,
sono de crianças que um dia nascerão.

São assim, como foram,
antes de existirem sombras e sereno sobre as dunas
que se movem e se afastam com a ventania,
desfazem-se,
transformam-se em mares de areia.

 

Espelho

Uma aurora incendiada assemelha-se
à sangrenta chaga do crepúsculo
como se fora a noite no lugar do dia.
Assa passadas na rua são ritmos antigos
em um som cantado pelos ventos.

Os sonhos nadam numa argila escura,
espécie de lama a se espraiar nas plantas
e estas são apenas troncos ressequidos.
A fumaça exala brumas, a paisagem
desvenda seu rosto esmaecido.

A maré avança sobre os ritos, um altar
feito de galhos queima e o sacrifício
é vão como a rotina dos que morrem
agonizando às primeiras horas da manhã.
Os presságios espalham seu perfume.

Nem cânticos ou lamentos nem o pranto
consolarão a noite e seus tormentos.
A escuridão perpassa seus gemidos,
os animais escondem-se nas sombras
e os homens em pressentimentos.

Uma noite esmagada pelos sonhos.
Os vultos se perdem pelos labirintos,
são apenas reflexos dos espelhos.
O olhar tenta enxergar o horizonte
e desvendar o segredo desse instante.

 

Manhã

 A folha em branco e o sibilar do vento
formam nuvens
desafiando o pensamento

A indecisão alaga como água
e o claro da manhã vem
com a marca de pressentimentos

E pronuncia uma palavra inútil
que antecede e define
o nunca mais.

 

os rostos

as faces na multidão se dissolvem
são emoções intangíveis

os corpos se misturam
as calçadas exalam passos e odores
e ruídos e calor
tudo perpassa a escuridão dos tempos

as crianças olham
com olhos de ódio neles não se veem
olhos de meninos

insones criaturas no final de um dia
de véspera em que a morte
espreita uma vez mais os inocentes

 

Caderno de Antonio Miranda com dedicatórias e textos poéticos de amigos coletados durante encontros literários de 2009 a 2012

 

*

 

Página ampliada em novembro de 2021

 

 

.

 

Página publicada em maio de 2008, republicada em agosto de 2009; republicada em março 2010.

Página ampliada e republicada em abril de 2019.



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