CAÊ GUIMARÃES
Caê (Carlos Eduardo) Guimarães nasceu em 1970 no Rio de Janeiro, transferindo-se com a família para o Espírito Santo em 1974. É jornalista, formado pela Universidade Federal do Espírito Santo, e redator publicitário. Já atuou em video e cinema, como roteirista e ator.
Estamos divulgando alguns dos títulos publicados pelo já legendário editor Massao Ohno, falecido recentemente, em homenagem pelo grande serviço que prestou à poesia brasileira. O livro do Caê é um deles.
De
Caê Guimarães
POR BAIXO DA PELE FRIA
São Paulo: Massao Ohno, 1997.
99 p. ilus.
JANELAS
Passos sem pegadas na magra madrugada.
A mesma luz fraca de todo dia,
amém, também se apaga.
Afago, gelado, o escuro do quarto apagado.
Noturno travado,
tranca e nunca esquece de conferir
se realmente trancou a porta.
Triste rindo cumpre sua quota.
Convive em silêncio cúmplice
com suas meias na sacada penduradas.
Freiras de flanela rasgada.
Frieiras na carne arrastada
pela quase finda vontade.
O que eu valho (que bom)
não vale nada.
PERDAS E DANOS
Arrotaram uma arrogância de água mineral gasosa.
Sacudiram qualidades de plástico
num chocalho sem guizos.
Aplausos primeiro.
Depois, risos.
A menina que catava conchas na praia suja cresceu.
Hoje conta histórias para boi mugir.
A ilha que eu sonhava, bem ao norte deste empate,
afundou no oceano de porquês.
Eu poderia fazer uma corda com retalhos
a fim de atravessar os sete mares e as cinco pontes.
Ou escrever uma peça para marionetes sem fios.
Recusei a oferta e o altar.
Com os olhos procurei ao redor,
mas o redor era fora do alcance da vista.
O tiro de despedida é mais doce
do que o beijo de misericórdia.
Surpresas a varejo empresariam nossa mentira.
Um chiclete gruda na memória
retardando a detonação daquela bomba.
Publicarei minhas memórias num edital do tribunal de contas.
DISK-HORA
E se a necessidade fosse do tamanho do pensamento?
E se a minha roupa desfiasse e voltasse para o novelo?
E se a providência valesse menos que farofa jogada ao vento?
E se meu irmão viajasse para longe e eu nunca mais tornasse a vê-lo?
E se meu cão conversasse comigo em alemão?
E se felicidade tivesse preço, quanto valeria o dinheiro?
E se a boca ao morder não mais fechasse?
E se a cola ao colar unisse?
E se eu assinasse tudo o que já disse?
E se ao sorrir a minha alegria fosse triste?
NÃO AUTORIZADO
Andei como andam os suicidas.
Com uma bala bem rente ao coração,
e uma saudade espremida, exaltada e apertada entre os dentes.
Saí, como se todas as portas fossem dispostas na diagonal.
Desta forma poderíamos subir
e descer andares sem o uso da escada.
E isso não seria nada mau.
Lembrei, como a lembrança que sobe goela acima,
e, gosmenta, se recusa a ser cuspida.
Inventei fraturas e tipóias para me pôr a salvo,
sem saber que os soldados sorriam
por se julgarem do lado certo do pelotão de fuzilamento.
Escrever no escuro memórias daqui para o futuro.
E antecipadamente marcar o dia e a hora da própria tocaia.
Acho que sou o espécime único de uma grande laia.
Página publicada em setembro de 2010 |