AUGUSTO ESTELLITA LINS
Rio de Janeiro, 1929 – Brasília, 2007. Foi diplomata de carreira, ministro, embaixador, professor de nível superior especializado em letras e lingüística. Escritor de textos profissionais diplomáticos e de ficção e poesia, ensaios e crítica de arte, lingüística e semiologia. Artista plástico de vanguarda, com mais de 2.500 obras sobre tela e papel e diversas exposições no exterior. Artista gráfico, costumava diagramar, datilografar, ilustrar seus próprios livros e criar a capa de alguns deles.
Publicou 19 obras, entre elas, Desafio (ed. Auriverde, RJ); O Santo Exilado de Vigia (Ed. Escopo, Brasília); Boa Noite, Jesus (Ed. Alternativa, Brasília); Antipoese (Ed. Grafel, Foz do Iguaçu, 1985); Três Elegias de Foz e Onze Cânticos de Iguaçu (Ed. Grafel, 1986); Depoimento dos Sessenta (Ed. Revista Continente, RJ, 1982); Linguagem Internacional e Diplomática; Etiqueta, Protocolo e Cerimonial e Rio de Sol a Sol, Feira e Feira, de Janeiro a Janeiro (Ed. Escopo, 1982); Ah! Mar, a Grécia (Escopo, 1990); Leque Madrigal (exemplares de execução artesanal pelo autor, Brasília, 1993).
Foi membro da Associação Nacional de Escritores (ANE); da World Citizen; do Sindicato de Escritores de Brasília; da ALMA (Associação de Artistas Plásticos), de Buenos Aires; da Academia de Abogados del Ecuador e da Academia de Letras do Rio de Janeiro, ocupando, em 1983, a Cadeira nº 11, de Vinícius de Moraes. Colecionou vários prêmios, com destaque para o de Direitos Humanos da Unesco, e o de Cultura, do Ministério da Educação e Cultura. Foi premiado no Concurso Internacional de Ensaios da Revista Cuadernos de Paris e na I Exposição de Pintura Espontânea de Paris.
LINS, Augusto Estellita. Desafio. Rio de Janeiro: Gráfica Auriverde, 1982? 53 p. 15,5x22,5 cm. Augusto Estellita Lins “ Ex. bibl. Antonio Miranda
O DESCONHECIDO
Porque cruzaste todas as terras sem pisar uma estrada
é que te recordo. Poucos se orgulharão de haver vencido
a conspurcação das notícias escandalosas, a vaidade
das citações eruditas, o simples anúncio profissional.
Morres com teu nome virgem (se é que viste a morte),
que ninguém decifrou sob a veste batismal.
Mesmo tua calça imunda está pura, e nem falar
da ingenuidade que transpira em teu suor repulsivo.
Como nunca te vi, não me inspiras ódio nem medo,
nem o amor evangélico que supõe vitória interior.
Simplesmente sei que hás existido e racionalmente te escrevo.
Ó desconhecido! Que necrológio mais eloquente,
ainda que foras génio, santo, criminoso ou atleta?
Nas estradas te honram, de joelhos, moribundos homens esmagados.
LINS, Augusto Estellita. Antipoese. Foz do Iguaçu, PR: Grafel, 1985. 52 p. 51 p. 15x22 cm. Augusto Estellita Lins “ Ex. bibl. Antonio Miranda
ESMERALDA
Porque te aprendi de cor,
mesmo o menor pormenor
sou capaz de descrever-te
com as palavras exalas:
teus longos cabelos verdes
tão finos quando desciam
até os pés e envolviam
teu corpo numa cascata.
Os teus cabelos de limo
eram meu único arrimo
e minha consolação.
Também eram teu vestido
quando teu corpo despido
tremia nas minhas mãos.
De teus seios lapidados
talvez eu me esqueceria?
E teus olhos de esmeralda
traziam saudade lá dos
garimpes onde viviam.
Aqueles olhos de arestas
e faces vitrificadas
incrustados sob a testa
com sobrancelhas bordadas.
E tua boca de grama
onde meus lábios ardiam
consumidos pelas chamas.
Como esquecer-me de ti:
teu corpo de clorofila
grudado às minhas axilas,
agarrado aos meus quadris.
Tuas mãos de porcelana
correndo aflitas por mim
á procura de um confim
onde as mãos nunca se enganam.
Esmeralda, não esqueço
da fruta verde o caroço:
tatuado em cada osso
traga a cifra do teu preço.
LINS, Augusto Estellita. Rio de sol feira a feira de janeiro a janeiro. Brasília: 1990. 168 p. 15,5x22,5 cm. Impresso na gráfica Escopo Editora. “ Augusto Estellita Lins “ Ex. bibl. Antonio Miranda
LAGOA
Ágoas de
Ig-panema
panemas
contemplar
cada instante
perfeito
curva o calombo
pegapega peguinha
turma da pesada
Montanhas recortadas no papel azul
Arranha-céus de cartolina
linhas sinuosas
manchas de todas as cores
nada tem importância
tudo bem
MANGUE
Compridas sombras de palmeiras
abanam as calçadas enluaradas
quando a noite é de lua, ninguém
desacredita a astrologia
um mangue de calafrio
corre entre as pernas
todo mundo passa a mão pelo mangue
das pernas e algumas
meninas chegam a temer desgraças
mas as putas velhas esconjuram
trepando de graça
Calor de verão subindo o canal
de lama, com exalações fertilizantes
A noite que apenas começa
com essa lua como uma bunda de polaca
bota todomundo arretado
só de olhar a lua e suar o mangue
sentindo o suado nas calças quando anda
e o suor a escorrer entre os pentelhos e o saco
As cortinas estampadas correm depressa
quando entram e saem
os fregueses.
Que às vezes
demoram mais.
FAVELA (II)
O cheiro doce
da vida azeda.
Velha a urina
que velhos mijam
na bica pública
fonte e cornija.
Lava, lava, lavadeira
a bunda branca da trouxa.
O cheiro amargo
a vida ao largo
na viela estreita
Lava, lava, lavadeira
a bunda branca da trouxa.
Becos de encosta acima
vão barracos.
A favela se arrima
no penhasco.
Arde a favela, azeda
um calabouço.
Crime e castigo
nascem num só caroço.
Faca se crava
no pescoço.
Navalha enfia-se
na barriga.
A roupa se lava de sangue lavado.
A lavadeira faz assim,
assim assado.
FAVELA (III)
A pele cor de mazela
com tonalidade escura
em edições de ossatura
lê a rima da favela.
Lá onde a fome é amarela
(azulada enquanto dura)
e mais dura a garra férula
na ossatura das costelas.
Nunca rugirem as feras
ou vão presas, uma a uma,
no camburão sem doçuras.
Azul céu, brancas cancelas,
com silêncios e colinas,
ódio e amor nos ensinas.
SUNSET
Quem vem da praia
passando o Nogueira
pode ser que veja
o Genaro da Bahia
ou o João do Surdo.
Encontrar a Edinéia
também não seria absurdo.
Ou a peruca da Vanessa que mora perto,
paquerando seja o que seja.
Em frente, às cancaras aberto
o Beco da Fome
que ninguém esquece
onde ninguém tem nome
mas é gente pra burro
e se conhece.
Corro
ao Sunset;
por um vermute
danço a noite inteira
na gafiteca.
Jurema foi muito bacana.
Gente da redondeza.
Marinheiros
franceses à paisana.
Pares estreitos dormem nas mesas.
Amanhece.
CHAPEUZINHO VERMELHO
Avenida Atlântica
Ai solimar
récita romântica
ai riosol
Copacabana
ai solpoema
flor de laranjeira
ai riorema
cacho-banana
ai mutirão
Vai Chapeuzinho
ai solidão
saia de linho
ai solestar
de velocípede
ai riocantar
menina bípede
ai solandou
Quid, si is apud te
ai pernaforte
deposuerit rubrum capellum
ai boassorte
transientem ad coelum
ai ventonorte
virginen reddasne ?
ai solipraia
Muito cuidado
ai ternabraço
seu namorado
ai fortebraço
caminho curvo
ai cansaço
desejo turvo
ai disparada
elevador
ai invertigem
caixa de amor
ai puravirgem
avó memória
ai mudatempo
de igual estória
ai contratempo
chama PM
ai viraleme
Tatatata-ratatata
ai rimavelha
Lobo
ai tirateima
Bobo
ai falamundo
Tragédia
ai viramundo
Inédita
ai quemdiria
A VOZ DA AMÉRICA
Ouvi a voz da América
sem cinzas, fuligem
não de almas histéricas
em Greenwich Village
na lost generation
na beat generation
vivi e convivi
amor e tresamor
e outras várias
de procelárias
vozes de araucária
sabem murmurar
a sintaxe enérgica
a rude gramática
da visão lisérgica.
De
antipoese
(1985)
ADVINHA
Meu corpo maniçoba
minha língua curare
com frechas brinco
de caça e pesca
Na atiradeira
sou infernal
não escapa nem
pata de tuim.
A jararaca tem
medo do meu tacape
e coco de tupinambá
na minha mão vira jaca.
Corro pela mata
varo os igarapés
falo todas as línguas
de pindoramília.
Tudo o que possuo
é da minha tribo
o que não me faz falta
é de quem precisa
Esqueci o tempo
perdi as medidas
me deram novas crenças
esqueci as antigas.
Mas a vergonha deles
eu nunca aprendi.
Vestiram minha alma
com rancor e cobiça.
OPERÁRIO
Saco vazio
não fica em pé.
Mas tão vazio, tão vazio
anda o saco,
um dia fica
de saco cheio.
Tanto vai o pote à fonte,
um dia se quebra.
Mas, tanto, tanto vai
o pote à fonte,
que a fonte secou.
Melhor só que mal acompanhado.
Mas tão só, tão só,
acaba entrando no boteco
e porrando de pinga.
Um operário só não faz verão.
Mas todos os solitários
unidos no sindicato,
verão se faz ou não.
(poema premiado no III Concurso Raimundo Correa de Poesia, da Editora Shogun.)
De
Três Elegias de Foz
(1986)
METAMORFOSES DE UM TROMBADINHA IGUAÇUENSE
O trombadinha iguaçuense
não cresce com os sonhos do colega carioca
nem com a sábia experiência
do congênere paulista.
Começa humilde
esmolando nos cruzamentos
ao lado do cego e do faminto.
Nas brigas de rua, aprende
a desprezar a dor e ver correr o sangue.
Pode dormir em qualquer canto
mesmo que sopre o vento gelado da Patagônia.
Vomita depois do primeiro assalto.
Chora quando espancado pela polícia.
Depois aprende a não chorar.
Assalta sem ódio.
Furta sem apreensão.
Um dia
matará tranquilamente.
_ Bom dia, trombadinha.
Desejo-lhe bom dia
enquanto é tempo.
Ele me acena
já na esquina repleta de sol
agradecido
e meu relógio de ouro
faísca reluzente
no movimento amável e pendular
de sua despedida.
De
Ah! Mar, a Grécia
(1990)
GIORGOS, NIKOS, KOSTAS
Se você é motorista,
seu nome é Giorgos.
Se você é marinheiro,
seu nome é Nikos.
Se sou qualquer um,
chamem-me de Kostas.
Tenho dos curos o porte do atleta;
dos turcos o preconceito e o respeito humano;
do mediterrâneo a cintura grossa;
do romano, vaidade e presunção;
do escravo o complexo da servidão;
do cidadão ateniense a agressão verbal;
de cada tribo helênica ou bárbara
algo que me distingue no tamanho e na forma
dos dedos, do pênis, das mãos, dos pés;
das ilhas se sou, meu enorme nariz
triangular e saliente me denuncia
e me qualifica para servir como evzono
no batalhão da guarda.
Sou Giorgos, Kicos, Kostas,
com ambição de mando autoritário
e enriquecer honestamente
sem excessivos escrúpulos.
Por dentro me remordem
duas almas febris em estilhaços
que tento restaurar sem demasiado empenho
pois em cada fragmento, como dos frisos
e baixos-relevos dos templos antigos,
emerjo fantasiado de tal paixão, de qual vício,
de uma luxúria, de uma libertinagem,
um símbolo de vida, um signo de amor.
Já não passeio nu nem nas dobras
da túnica revelo minha anatomia.
Como encobrir, porém, as artimanhas
que meu corpo urde desde há milênios?
Como vestir com calças, sapatos e suéteres
as evidências de mil gerações polêmicas?
De meu pai aprendi que a bondade
é uma mentira se nasce em terra estrangeira.
De minha mãe ouvi que sou belo
e tudo me é devido. Ah, mar, cego
em tuas ondas me embalam as vozes dos deuses, sou
como no berço me balançava minha mãe, só ela, tudo.
De
Leque Madrigal
(1993)
20. EM QUE BALCÃO DE TEATRO
Angélica Torres Lima
Em que balcão de teatro
estavas nua, nua
diva, deusa, musa
de granito ou alabastro
Rodin moldou as tetas
pêras ou róseos pomos
e o sexo que os gnomos
mordem com piruetas
Pedi a Degas dar
passos de bailarina
e cores de anilina
a seu corpo sem ar
Eu, porém, quero de minha lavra
dar-te voz e o segredo da palavra
28. QUE ELA ERA A MULHER E A SERPENTE
Vinícius de Moraes
Na lenda invertida
a mulher era sabida
e da serpente híbrida
no íntimo, não na atitude explícita.
No fruto do bem, enrustida
estava a semente do mal, descrita
por analfabetos da vida
como fruto da desdita.
A mulher-serpente reedita
a lenda maldita
bem escrita por sumérios e mal lida
por confusos escribas semitas.
Se era mulher, se serpente, é mister
tratá-la a de ouro o pente, de prata
a colher
Se serpente, de um e outra desdenha
e usar nem sonha.
Também se mulher, de ambas em taça
colherás a peçonha
Página feita em janeiro de 2010.
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