ANTONIO CICERO
(Rio de Janeiro, em 1945) e é formado em Filosofia pelo University College, da Universidade de Londres. Poeta e ensaísta, é autor, entre outras coisas, dos livros de poemas Guardar (Record, 1996 - Prêmio Nesdé) e A cidade e os livros (Record, 1996), assim como do ensaio filosófico O mundo desde o fim (Francisco Alves, 1995) e do livro de ensaios sobre poesia e arte Finalidades sem fim (Companhia das Letras, 2005). Junto com o poeta Waly Salomão, editou o livro de ensaios O relativismo enquanto visão do mundo (Francisco Alves, 1994) e organizou a Nova antologia poética de Vinícius de Moraes (Companhia das Letras, 2003). Letrista de canção popular, tem como parceiros e intérpretes Marina Lima, Adriana Calcanhotto, João Bosco e Caetano Veloso, entre outros.
Estamos mergulhados numa poesia extraordinariamente reflexiva e ao mesmo tempo de um frescor imagético incomum, do mais maduro viço. Uma dicção clássica, grega e latina, capaz de odes e nênia, acha o ponto exato da ruína eternamente contemporânea. E se os mitos são atuais (Proteu se confunde com a televisão, Prometeu às voltas com a agência de viagens, ícaro e Dédalo rasgam a geringonça do soneto, Narciso mira o garoto narcisado na vitrine, um parassurfista embarca ainda para Citera na reminiscência de um antigo verão carioca) não está aí o ponto da derrisão. Junto com Don' Ana e Francisca, todos brotam da fonte agora, enquanto a "inimaginável / beleza e dor" do mundo viajam com o ônibus iluminado e sombrio de trabalhadores na "Ionga meândrica jornada" de volta a casa.
Poesia: sair pela porta sem saída (desde a epígrafe ao último poema, o livro se revira e revigora entre a claustrofobia e a respiração). Um livro espantosamente belo, e ainda capaz - homoeróticas - das mais límpidas declarações de amor que temos visto. JOSÉ MIGUEL WISNIK
Antonio Cicero foi, para mim, uma das grandes surpresas do 1. Festival de Poesia de Goyaz (março 2006): primeiro, pela lucidez e firmeza de seu discurso, por sua erudição sem ranço. Depois, pela excelência de sua poesia. Há tempos não lia um livro de poesia que me convencesse por inteiro. Tive a sensação de estar diante de um Kavafis redivivo, atualizado, a um tempo cerebral e carnal, clássico e pós-moderno, despojado e ousado. Sem retórica. ANTONIO MIRANDA
TEXTOS EM PORTUGUÊS / TEXTOS EN ESPAÑOL
O PAÍS DAS MARAVILHAS
Não se entra no país das maravilhas,
pois ele fica do lado de fora,
não do lado de dentro. Se há saídas
que dão nele, estão certamente à orla
iridescente do meu pensamento,
jamais no centro vago do meu eu.
E se me entrego às imagens do espelho
ou da água, tendo no fundo o céu,
não pensem que me apaixonei por mim.
Não: bom é ver-se no espaço diáfano
do mundo, coisa entre coisas que há
no lume do espelho, fora de si:
peixe entre peixes, pássaro entre pássaros,
um dia passo inteiro para lá.
A CIDADE E OS LIVROS
para D.Vanna Piraccini
O Rio parecia inesgotável
àquele adolescente que era eu.
Sozinho entrar no ônibus Castelo,
saltar no fim da linha, andar sem medo
no centro da cidade proibida,
em meio à multidão que nem notava
que eu não lhe pertencia - e de repente,
anônimo entre anônimos, notar
eufórico que sim, que pertencia
a ela, e ela a mim -, entrar em becos,
travessas, avenidas, galerias,
cinemas, livrarias: Leonardo
da Vinci Larga Rex Central Colombo
Marrecas Íris Meio-Dia Cosmos
Alfândega Cruzeiro Carioca
Marrocos Passos Civilização
Cavé Saara São José Rosário
Passeio Público Ouvidor Padrão
Vitória Lavradio Cinelândia:
lugares que antes eu nem conhecia
abriam-se em esquinas infinitas
de ruas doravante prolongáveis
por todas as cidades que existiam.
Eu só sentira algo semelhante
ao perceber que os livros dos adultos
também me interessavam: que em princípio
haviam sido escritos para mim
os livros todos. Hoje é diferente,
pois todas as cidades encolheram,
são previsíveis, dão claustrofobia
e até dariam tédio, se não fossem
os livros infinitos que contêm.
TÂMIRIS
Jamais poeta algum houve mais alto
do que Tâmiris, o trácio, rival
de Orfeu, cujo canto é capaz de dar
saudade do que nunca nos foi dado
salvo reflexo em verso de cristal.
Se um mortal alcançasse ser feliz,
tal seria Tâmiris: quem o vir
deitado sobre a grama com o rapaz
(digno, pela beleza, de dormir
nos braços do próprio Apolo) que o ama
e cujos cabelos Zéfiro afaga
com dedos volúveis, há de convir
comigo em que é assim, a menos que haja
visto, no rio em que agora mergulham
ou na relva que ao sol dourada ondula
no antebraço do moço à beira d'água
ou na ode em que essa manhã fulgura
e foge para sempre, agora e aqui
refolharem-se o passado, o porvir,
o alhures: tantas trevas na medula
da luz. Já Tâmiris quer possuir
as Musas que o possuem. É seu fado
desafiá-las e perder: insensato,
esplêndido, cego, cheio de si.
CANÇÃO DO AMOR IMPOSSÍVEL
Como não te perderia
se te amei perdidamente
se em teus lábios eu sorvia
néctar quando sorrias
se quando estavas presente
era eu que não me achava
e quando tu não estavas
eu também ficava ausente
se eras minha fantasia
elevada a poesia
se nasceste em meu poente
como não te perderia
OBSESSÃO I
Algumas coisas na terra
- como certa praia oculta
do mundo por árduas serras,
alcantiladas e plúmbeas,
e protegida de acesso
marítimo por escolhos
onde escuma um mar possesso,
que depois, tranqüilo e morno
dos corais até a areia
(cuja finura seduz),
por água tem luz azul –
que permaneçam secretas
e inacessíveis, senão
a alguma imensa obsessão.
VITRINE
Que divisa o olhar desse moreno?
Namora os tênis atrás da vitrine?
Ou a vidraça que os devassa e inibe
os seus reflexos serve-lhe de espelho
e ele recai na imagem de si mesmo,
igualmente visível e intangível?
É assim tantálica que ela me atinge
obliquamente e ao mesmo tempo em cheio
e mesmeriza, e sinto meio como
se eu o despisse e ele mal percebesse.
Quando olha para trás um instante, atino
sonhar e, salvo engano, ter nos olhos
cacos de um campo de futebol verde
feito o pano das mesas dos cassinos.
SAIR
Largar o cobertor, a cama, o
medo, o terço, o quarto, largar
toda simbologia e religião; largar o
espírito, largar a alma, abrir a
porta principal e sair. Esta é
a única vida e contém inimaginável
beleza e dor. Já o sol,
as cores da terra e o
ar azul — o céu do dia —
mergulharam até a próxima aurora; a
noite está radiante e Deus não
existe nem faz falta. Tudo é
gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim;
e, sobre todas as coisas, o
eterno silêncio dos espaços infinitos que
nada dizem, nada querem dizer e
nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.
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De
GUARDAR
Rio de Janeiro: Record, 1997.
“Prêmio Nestlê de Literatura Brasileira 1997”
SEGUNDO A TRADIÇÃO
O grande bem não nos é nunca dado
e foste já furtado do segundo:
O resto é afogar-te com o amado
na líquida volúpia de um segundo.
STROMBOLI
Dormes,
Belo.
Eu não eu velo
Enquanto voas ou velejas
E inocente exerces teu império.
Amo: o que é que tu desejas?
Pois sou o a noite, somos
Eu poeta, tu proeza
E de repente exclamo:
Tanto mistério é,
Tanta beleza.
ONDA
Conheci-o no Arpoador,
garoto versátil, gostoso,
ladrão, desencaminhador
de sonhos, ninfas e rapsodos.
Contou-me feitos e mentiras
indeslindáveis por demais:
eu todo ouvidos, tatos, vistas,
e pedras, sóis, desejos, mares.
E nos chamamos de bacanas
e prometemo-nos a vida:
Comprei-lhe um picolé de manga
e deu-me ele um beijo de língua
e mergulhei ali à flor
da onda, bêbedo de amor.
GUARDAR
Guardar urna coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar urna coisa é oihá-la, fitá-la, mirá-lapor
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar urna coisa é vígiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso de publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
De Guardar, 1996
DE TRÁS PARA FRENTE
O amante,
Cabeça tronco membro
Eretos para o amado,
Não o decifra um só instante.
Eu mesmo ainda me lembro:
O amante é devorado.
Já o amado,
Por mais ignorante e indiferente,
Decifra o seu amante
De trás pra frente.
(De Guardar, 1996)
ALGUNS VERSOS
As letras brancas de alguns versos me espreitam
em pé no fundo azul de urna tela atrás
da qual luz natural adentra a janela
por onde ao levantar quase nada o olhar
vejo o sol aborto amarelar as folhas
da acácia em alvoroço: Marcelo está
para chegar. E de repente, de fora
do presente, pareço apenas lembrar
disso tudo como de algo que não há
de retornar jamais e em lágrimas exulto
de sentir falta justamente da tarde
que me banha e escorre rumo ao mar sem margens
de cujo fundo veio para ser mundo
e se acendeuf eito um fósforo, e é tarde.
Inédito
CÍCERO, Antonio. Porventura. Rio de Janeiro: Record 2012. 79 p. 13,5x21 cm. ISBN 978-85-01-09952-3 Orelha com apresentação por Antonio Carlos Secchin. Projeto gráfico: Regina Ferraz.
Antonio Cícero escreveu um livro inteiro em que, maniqueisticamente, contrapõe poesia e filosofia. Tenta negar o “poema filosófico”. Tudo bem. Mas vejam se não há um substrato filosófico nos poemas dele...
O fim da vida
Conhece da humana lida
a sorte:
o único fim da vida
é a morte
e não há, depois da morte,
mais nada.
Eis o que torna esta vida
sagrada:
ela é tudo e o resto, nada.
O poeta cego
Eis o poeta cego.
Abandonou-o seu ego.
Abandonou-o seu ser.
Sem ser nem ver ele verseja.
Bem antes do amanhecer
Em seus versos talvez se veja
Diverso de tudo o que seja
Tudo que almeja ser.
Desejo
Só o desejo não passa
e só deseja o que passa
e passo meu tempo inteiro
enfrentando um só problema:
ao menos no meu poema
agarrar o passageiro.
Veja e-book do livreto:
http://issuu.com/antoniomiranda/docs/antonio_cicero
CÍCERO, Antônio. Sair. Jabotão, PE: Editora Guararapes EGM, 2015. 20 p. capa dura.
Edição artesenal, tiragem limitada, do ed. Edson Guedes de Morais. 20,5x13,5 cm “ Antônio Cícero “ Ex. bibl. Antonio Miranda
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ANTOLOGIA POÉTICA DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Alberto da Costa e Silva. Antonio Carlos Secchin. Antonio Cícero. Carlos Nejar. Domício Proença Filho. Geraldo Carneiro. Geraldo Holanda Cavalcanti. Marco Lucchesi. Brasília: Câmara dos Deputados, 2020. 204 p. ISBN 978-65-87317-06-9 Ex. bibl. Antonio Miranda
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Ícaro
Buscando as profundezas do céu
conheceu Ícaro as do mar
Adeus poeira olímpica
grãos da Líbia
barcos de Chipre
Adeus riquezas de Átalo
vinhos de Mássico
coroas de louro
flautas e liras
Adeus cabeça nas estrelas
adeus amigos
mulheres
efebos
adeus sol:
ouro algum permanece.
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História
A história, que vem a ser?
mera lembrança esgarçada
algo entre ser e não ser:
noite névoa nuvem nada.
Entre as palavras que a gravam
e os desacertos dos homens
tudo o que há no mundo some:
Babilônia Tebas Acra.
Que o mais impecável verso
breve afunda feito o resto
(embora mais lentamente
que o bronze, porque mais leve)
sabe o poeta e não o ignora
ao querê-lo eterno agora.
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TEXTOS EN ESPAÑOL
Tradução de Adolfo Montejo Navas
Foto extraída de:
MORDZINSKI, Daniel. A literatura na lente de Daniel Mordzinski. Textos de Adriana Lisboa e Victor Andresco. São Paulo: SESI-SP editora, 2015. 412 p. ilus. col. ISBN 978-82075-604-2 Textos em português e castelhano. Ex. bibl. Antonio Miranda
ANTONIO CICERO
(Río de Janeiro, 1945) Podría representar cierta vertiente clásica manifestada en algunas obras de la poesía última brasileña, si no fuera porque, precisamente, este fondo temático (a veces de mitología griega en su caso) contiene una reflexión contemporánea del mundo y una sensibilidad formal de canción (ya que aparte de filósofo independiente de cualquier escuela, el poeta es también reconocido compositor de letras de música, con Joáo Bosco, Adriana Calcanhoto y, sobre todo, con su hermana, Marina).
OBRA POÉTICA: Guardar, 1996; Esses poetas, 1998.
GUARDAR
Guardar una cosa no es esconderla o encerrar!a.
En cofre no se guarda nada.
En cofre la cosa se pierde de vista.
Guardar una cosa es mirarla, fijarla, mirarla por
admirarla, esto es, iluminarla o ser iluminado por ella.
Guardar una cosa es vigilarla, esto es, hacer vigília por
ella, esto es, velar por ella, esto es, estar despierto por ella,
esto es, estar por ella o ser por ella.
Por eso se guarda mejor el vuelo de un pájaro
Que un pájaro sin vuelos.
Por eso se escribe, por eso se dice, por eso se publica,
por eso se declara y declama un poema:
Para guardarlo:
Para que él, a su vez, guarde lo que guarda
Guarde lo que sea que guarda un poema;
Por eso la jugada del poema:
Por guardarse lo que se quiere guardar.
DESDE ATRÁS HACIA DELANTE
El amante,
Cabeza tronco miembro
Erectos para el amado,
No lo descifra un solo instante.
Yo mismo aún me acuerdo:
El amante es devorado.
Ya el amado,
Por más ignorante e indiferente,
Descifra a su amante
Desde atrás hacia adelante.
(De Guardar, 1996)
EL PAÍS DE LAS MARAVILLAS
No se entra en el país de las maravillas
pues él queda del lado de afuera,
no del lado de dentro. Si hay salidas
que dan a él, están seguramente en la orla
iridiscente de mi pensamiento,
jamás en el centro vago de mi yo.
Y si me entrego a las imágenes del espejo
o del agua, teniendo en el fondo el cielo,
no piensen que me enamoré de mí.
No: bueno es verse en el espacio diáfano
del mundo, cosa entre cosas que hay
en la lumbre del espejo, fuera de sí:
pez entre peces, pájaro entre pájaros,
un día paso entero hacia allá.
De Esses poetas (1998)
ALGUNOS VERSOS
Las letras blancas de algunos versos me acechan
de pie en el fondo azul de una pantalla detrás
de la cual la luz natural atraviesa la ventana
por donde al levantar la mirada casi nada
veo el sol abierto amarillear las hojas
de la acacia en alborozo: Marcelo está
a punto de llegar. Y de repente, de fuera
del presente, sólo me parece recordar
todo esto como algo que no ha de volver
jamás y en lágrimas exulto
de sentir falta precisamente de la tarde
que me baña y escurre rumbo al mar sin orillas
de cuyo fondo vino para ser mundo
y se encendió hecho un fósforo, y es tarde.
(Inédito)
*De Correspondencia celeste. Nueva poesía brasileña (1960-2000). Introducción, traducción y notas de Adolfo Montejo Navas. Madrid: Árdora Ediciones, 2001 – Obra publicada com o apoio do Ministério da Culta do Brasil.
*Nota: o tradutor Adolfo Montejo Navas é amigo comum nosso com Wagner Barja, e o convidamos a participar da exposição OBRANOME 2 no Museu Nacional de Brasília, durante a I Bienal Internacional de Poesia de Brasília 2009. Montejo Navas prometeu-nos suas traduções ao castelhano e só na Espanha, em viagem, é que conseguimos os originais que estamos divulgando parcialmente no nosso Portal de Poesia Ibeoramericana, com os agradecimentos.
Página ampliada e republicada em setembro de 2008; ampliada e republicada em junho 2009. Página ampliada em dezembro de 2020
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