A miséria começa em casa,
com seus filhos, a lamúria cega mas certa
de seu pai, o tiroteio marca os valentes
o vento caudaloso nos adoça, é podre, talvez
áspero, saber que alguém veio aqui;
bato palmas, você não sabe o que escreve,
pensa que a imaginação decifra a dor
mas ela não decifra; você , que nem devia
ter pensado, agora é assim:
poetas sobem o morro, fazem suas pesquisas
acham que a vida rude lhes inspira
como nos cardápios escritos com giz,
ou pombos que mastigam num despacho
um pedaço de galinha (tudo é canibal
faz parte da cultura, é matinal
sangrar na latrina, enquanto
do alto dos edifícios, ao som
do baile quente, ainda se decide
ao pé de uma fogueira
o preço de uma vida).
*
Meu espelho-labirinto.
Cravo os olhos para vê-la
no mistério do quarto.
Nenhum rato, silêncio.
É no que se dobra em ruga
ao se olhar o infinito
que se dobra para eu vê-lo
pois meu olhar embora
selvagem, é ínfimo
no infinito das pétalas
que o contém, afinal,
no convés do navio
o que se olha é através
do mar, através das
borbulhas de sangue
com o que já perdeu:
metade de mim é
o acaso das palavras
que volta e meia
pingam da mão
analfabeta, de abusar
da fama e se impor
aos pais — Filho
que à terra desce.
INIMIGO RUMOR – revista de poesia. Número 19 –
2º SEMESTRE 2007. Editores: Carlito Azevedo, Aug1usto Massi.
Rio de Janeiro, RJ: Viveiros de Castro Editora, 2007. 166 p. ISSN 415-9767. Ex. biblioteca de Antonio Miranda
(p/ Antônio Cícero)
Insistir, ruminar
os passos, o luar desses convivas.
Silêncio de ninguém, nada garante
o sucesso, óbvias são as dores;
mesmo assim continuo com minha caneta,
calculando erro após erro
nenhuma certeza. Pobre amor atroz,
das palavras lançadas ao vento,
esta é a menos pior.
Aliás, qual?
A CASA POSSUI MARAVILHAS que nos aguardam.
Ritmos e lendas que certamente nos aguardam
rosas e patifes que não escolhemos.
Tudo doce como vinho, bebido há horas,
espera a chegada dos velhos amigos.
Caminhamos horas a fio, a família é sua memória,
o fogo que nos habita, habitava aquela casa.
Escadarias sob o alpendre, certo cheiro de água
respingando. O silêncio tem suas armadilhas
contorções, entrelinhas, entre o asfalto
e o paralelepípedo. Ouvia a todos, ouvia a seco
e me calava. A casa respinga sua memória
escorre em nós uma gravata, que afrouxa.
E enquanto todos se adiantavam pulando
na toni, a casa tinha seus fantasmas,
seus ruídos — não há casa que não tenhas;
rogava eu pelo destino. A casa rugia
enquanto vivíamos e o céu que rodeava era outro.
Os fios descampados nos ameaçam. O fantasma
era o tempo, brinda conosco, comemora
o aniversário. A casa permanecia, sem saber
de nós. Somos seus fantasmas. E não há
estória que dê conta do mistério que queremos.
*
Página ampliada e republicada em dezembro de 2023