ÁLVARO PACHECO
Nasceu em 28 de novembro de 1933 no Piauí e mudou-se para o Rio de Janeiro em 1959. Jornalista, editor, poeta, advogado de formação.
“...os poemas de Álvaro Pacheco tocaram este leitor: na era do homem de acrílico a poesia continua a emitir sinais luminosos e confortadores, por mais que se queira esvaziá-la de todo sentido — e a sua tem aquele propriedade.” Carlos Drummond de Andrade
“Álvaro Pacheco é o conciliador do antigo com o moderno, do urbano com o rural, da esperança com o desengano, do discurso coma paisagem significativa. Atrai também o seu jeito de fazer poesia, isto é, o estilo, mistura de espontaneidade e amarga filosofia. Uma crosta festiva, alegre cobrindo com travo de amargura que — importante! — não se derrama, não se vulgariza. E metendo um palavrão dentro do poema, tão natural, sem chocar, sem constranger. Funcional.” Fábio Lucas
PRECISADOS
precisamos desses tóxicos
desse som dessa fumaça
desse medo intemporal
integrado no artifício
de nosso contentamento:
precisamos desse tempo
diluído em nossa alma:
precisamos esquecer.
precisamos nos matar
nessa mesma ecologia
de uma alma poluída
e da carne imergida
em abstrusa euforia.
precisamos desse sonho
circulando em nossos nervos
precisamos desse sangue
encobrindo nossos olhos
precisamos da sentença
e de como evitá-la:
precisamos desses fatos
para neles sancionar
todo o tempo improrrogável.
S. Paulo, 23/11/73
DIDÁTICA SOBRE A MORTE
Tudo o que resta, o tempo para a morte
que por isso é o espaço ancestral.
Todo o tempo que resta — e é para a morte
esse que nos falta em esperança.
E assim nos restando a morte espera
o que somos e em nós se desperdiça.
Guardamos os guardados — e a vida.
(E a morte nos toma o que guardamos.)
Privamos da alegria, em sacrifício,
o que vamos dedicar depois à morte
em nosso campo de avaros a esse tempo
subtraído depois ao desperdício
que poderia ser vida se estivéssemos
na vida mais lentos para a morte.
S. Paulo, 21/8/71
AUTOBIOGRAFIA
Há quarenta e tantos anos
meu pai pensou que eu ia nascer:
mas quem nasceu foi meu irmão mais velho
que hoje sofre de velhice e da doença de não saber de nada.
A esperança é branca
a morte é negra
o amor é pobre
a vida é fugaz
(eu sou arco-íris)
que nasceu dezesseis anos depois
calvo, sozinho, branco e preto,
às vezes no mundo vinte e tantos anos depois.
1962
DOR
A mão se fecha
você se crispa
em dor.
Você se crispa
a dor se abre
em flor:
e você não sabe
na terceira pessoa do singular
porque realmente sofrer
essa dor plural.
De
A FORÇA HUMANA
Rio de Janeiro: Editora Artenova, 1970
SOFREGUIDÃO
(Herança)
Trago os lábios úmidos do leite
que não bebi, tenho
as mãos cheias das coisas que perdi
lavo o coração de todas
as emoções perdidas, deixo
a herança dos sonhos que não tive
e não soube suportar, visto
as roupas (coloridas) invisíveis e mancho
os olhos de visões — e não as tive
meu filho, agarra-as por tua vez, agarra-as
por minha vez e sucede
teus lábios na fonte escaldante.
Rio, julho de 1969
ANTIMATÉRIA – 2
eu e antieu
em cargas compostas
para o aniquilamento
em choque sem compensar-se
em uma zona remota
dos euniversos, eu
e antieu, conflito
de antipartículas
constantes e partículas
móveis: amor, alegria, sonho
e a antimatéria: solidão
energias em crise propagando-se
eu e antieu integrados
nas horas leves, aniquilando-se
nas emoções e antiemoções
na desintegração final, morte
para integrar-se
nos universos, anti.
Rio, 28 de janeiro de 1970
SOLIDÃO
Que ninguém me conspurque este momento
de estar comigo
e me deixe intata a solidão.
que ninguém venha
na hora de não vir — e vindo
me deixe desolar.
que ninguém me conspurque a solidão
e me deixe crestar
ao reflexo e na massa intata
da lava dessa hora de mim mesmo
a consumir-se inteiro.
Vitória, agosto de 1968
DÚVIDA
O que fazer da alma quando o corpo ruge
a sua fome
— e o que fazer do corpo quando
a alma hesita?
Rio, março de 1968.
De
O VASO ETRUSCO
Rio de Janeiro: Aeroplano, 2003
“Em estado de perplexidade frente a tudo que remeta ao não-sentido de ser, a voz de Álvaro, estoicamente, contempla o vazio da transcendência e acolhe a inelutável dissolução da matéria (...)” Antonio Carlos Secchin
A TERNURA
Num domingo sobreposto,
ressuscitarei umas auroras
resistentes de minha carne
e qualquer sensação sobrevivente
da juventude anterior.
São outros tempos, ou apenas
outras circunstâncias, talvez
porque adormeci
e deixei que as pessoas se fossem
e não disse as palavras necessárias,
ou mesmo
porque estou muito cansado
e não sinta mais as coisas
como elas deviam ser, muito ternas
e inocentes — acho
que é terrível envelhecer,
muito ruim ser velho
ou apenas viver mais do que os outros,
esquecendo-me, dentro do tempo,
de como era lidar suavemente
com a ternura.
Rio, dezembro 2000
O PREÇO
Paguei todos os preços
que pediram: para começar
nasci.
Depois fui tropeçando
sabendo e não sabendo,
vendo e não vendo,
mas o tempo todo
pagando todos os preços sobrepostos.
— E a solidão?
Acho
que paguei muito mais do que cobraram.
Rio, agosto de 2000
O PROCESSO CONTRA DEUS
Na inscrição do vaso do arúspice
as palavras do inconformado intérprete:
Devemos fazer um processo contra Deus
que não soube fazer previsões
e condenou impunemente os homens
pêlos crimes que iriam ou não iriam cometer,
embora devesse saber
que tipo de culpa teria cada um,
tendo criado todos os seres e todas as culpas
e ignorado os inocentes, mas mesmo assim
condenou-nos todos à eternidade da morte
e às outras eternidades do medo e da esperança
dos inexistentes céu e inferno.
Deverá responder perante cada criatura
pêlos tormentos e incertezas
dessa invenção de Adão e Eva,
das ameaças do Pecado Original
e dos sacerdotes que as perpetuaram.
Rio, agosto 2001
PACHECO, Álvaro. Margem Rio Mundo. Rio de Janeiro: Ed. Artenova, 1966. 149 p. Capa: desenhos de Rui Oliveira. capa dura. 15x22 cm. Col. A.M. (EA)
CANTO DA LAVADEIRA DO RIO
Bate roupa, bate sol
bata fome, bate peitos
bate carne descarnada
na pedra, no coarador.
Precisa anil para a roupa
do patrão ficar branquinha
tinindo na estearina.
Bate a vida, a vida toda
bate a morte, a juventude
fica no rio, na pedra
se esgarça na correnteza
a pureza de menina
o sonho simples (de pobre)
os meninos espiando
ela só não vendo nada,
Precisa roupas, fiapos
um fiapinho de nada
pra chegar no céu enxuta.
Teresina, maio 65
PACHECO, Álvaro. Itinerários. Rio de Janeiro: Artenova, 1983. s.p. 14x20,5 cm ISBN 85-239-0009-8 Ex. Biblioteca Nacional de Brasília, doação da família de Francisco Vasconcelos.
NATUREZA MORTA
Este quarto é perfeito:
uma pia, um chuveiro,
um sabonete francês
e inúmeros cosméticos
para salvar a aparência.
É perfeita a cama: macia
como um gato angorá, mas quantos
corpos nele se afagarão
sob a minha pele?
Te digo:
a dose perfeita
são dois:
o quarto não importa
os cosméticos não importam
nem os gatos angorás.
Roma, janeiro, 77
SAUDADE
A saudade da beleza verde
nos corpos dourados
— e de nós
que não somos mais.
Rio, maio, 80.
Página ampliada e republicada em janeiro de 2009, ampliada em junho de 2012
Palavras-chave: Vaso etrusco - Velhice
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