ALMO SATURNINO
“Estamos perante um lírico de primeira grandeza. Mas quem não tenha tempo, deve passar à frente. Seus melhores poemas, dissimuladamente simples, na realidade são densos, salmos da condição humana que se interroga sobre origens e ternura ansiosa — o pássaro morto, a virgem negra.” PAULO DE CASTRO
SATURNINO, Almo. Aprendiz de poesia. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1966. 51 p. 12x18,7 cm. Ex. bibl. Antonio Miranda
PÁSSARO MORTO
Foge morto o pássaro, boiando
sobre o fio seio de uma vaga.
Há um coro do vento e do sentido
choro de cristal na oculta fraga.
Água caminheira, flexível
lâmina versátil da torrente:
foi-se em teu cantar o claro aspecto,
a imagem feliz do adolescente.
Onde sucumbiu minha esperança
— estrela inequívoca do amor?
Tudo se fundiu n’alva corrente
qual da flor extinta é murcha a cor.
Lenta, vais levando o tempo e vais
levando (sem ver o olhar absorto
que te segue) apenas a lembrança
— par de asas em cruz, pássaro morto.
CAFÉ-SOCIETY
Desnudado armazém de desencanto.
Entre estudados gestos e atitudes,
inconformado olhar de tédio e pranto,
palavras à fumaça se misturam.
Ambíguas formas intelectualizadas,
confusão de existências e destinos.
Eu e Carlos Moreira atravessando
sinal-verde de olhares femininos.
Juntos e sós. Pois a alegria é triste
ao contorcionismo do triste,
se não existe agora nem depois.
Café-society, diz-que-diz-que:
a fêmea de cabelos e olhos de uísque
me envolve em sedução. E diz que disque
pra 8-9652.
INFÂNCIA
A madrugada nos olhos
faz-se luz na face pura.
A amável intuição dos sentidos
recompondo a vida — labirinto
de realidade e sonho.
A ilusão azul do ar intáctil.
E à noite sonhando
mais estrelas no seu sono.
CICLO
Primavera. Amanhecia
na face pura e na flor.
Na fonte amadurecia
a sementeira do amor.
Para a ausente da ventura
— a vida partida ao meio —
asa distante na altura,
a primavera não veio.
Verão. Ternura nos ninhos,
o mel fluindo dos frutos.
Messe de ouro nos caminhos
de louros pomos enxutos.
Para ao ausente da alegria
os frutos só do abandono:
da colheita que floria
os frutos já tinha dono.
Outono. Cai a tristeza
na face; do olhar, o pranto.
Os cantos à natureza
são cantigas de acalanto.
Desolação pelos ermos,
compridos choros perdidos.
Longas tarefas sem termos,
braços exaustos, perdidos.
Inverno. Frio. A geada
desenha mapas na face.
Meta final de jornada:
vida, “resquiescat in pace”,
No varrido olhar sombrio,
a asa leve da espera:
na branca esteira do frio
o sopro da primavera.
Página publicada em outubro de 2016
|