AFONSO HENRIQUES (DE GUIMARAENS) NETO
Nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 1944, filho de Hymirene Papi de Guimaraens e do poeta Alphonsus de Guimaraens Filho. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1954 e seguiu depois para Brasília. Regressou ao Rio de Janeiro em 1972, trabalhando na FUNARTE de 1976-1994. Defendeu tese de doutorado em 1977 na UFRJ.
Primeiros livros de poesia: O misterioso ladrão de Tenerife (um dos primeiros livros da chamada “geração marginal”, em co-autoria com Eudoro Augusto), em 1972, reeditado em 1977 pela Sette Letras, comemorativo dos 25 anos de seu lançamento. Restos & estrelas & fraturas ((1975); Ossos do paraíso (1981); Tudo nenhum (1985); Abismo de violinos 1995),
Leia mais sobre o autor: http://palavrarte.sites.uol.com.br/Equipe/equipe_ahgneto.htm
TEXTOS EM PORTUGUÊS / TEXTOS EN ESPANHOL
TEXTO
Oh espina clavada em el hueso
Hasta que se oxiden los planetas!
Federico García Lorca
O texto, escura escama, pesadelo de eternidade,
Máscara densa do universo vomitando.
O texto, mas não a energia que o pensou,
Interrogando a simultaneidade absoluta.
Há uma esperança nas ruas, nas pedras, no acaso
de tudo,uma esperança, uma forma suspensa
entre o aparente e a essência, entre o que vemos
e a substância, uma esperança, uma certeza talvez
de que o rio não se dissolva no mar, de que
o ínfimo, o precário, a voz, a sombra,
o estalar das carnes na explosão
não se dispersem no todo, impensável medusa da inexistência.
Há uma luz qualquer sonhando integração, o suposto
destino dos ventos, das energias globais, a suposta
sabedoria com o que homem fecundou a crosta
envenenada do planeta, há uma luz qualquer
ensaiando águas pensadas no eterno esvair-se,
abstrato expansionário, há uns olhos além
da frágil realidade, da terrível matança, a
cruel carnificina entre seres pestilentos aquém
da fronteira do sonho, um texto além do texto,
uma esperança talvez, enquanto somo e nos cumprimos,
enquanto somos e nos oxidamos, enquanto
somos e prosseguimos.
(do livro O misterioso ladrão de Tenerife)
DOS OLHOS DO NÃO
se lhes kennedy ou lênin ou napoleão
não acreditem nesta única realidade
neste implacável colar de conchas de ar
se lhes derem os códigos os gestos as modas
não acreditem nesta enlatada realidade
nesta implacável aranha de invisíveis fios
se lhes derem a globalização o progresso a palavra
não acreditem na imposta realidade
na implacável engrenagem das hélices de vácuo
aprendam a olhar atrás do espelho
onde a história do não registrado
aprendam a procurar debaixo da pedra
a história do sangue evaporado
a história do anônimo desastre
aprendam a perguntar
por quem construiu a cidade
por quem cunhou o dinheiro
por quem mastigou a pólvora do canhão
para que as sílabas das leis fosses cuspidas
sobre as cabeças desses condenados ao silêncio
(do livro Restos & estrelas & fraturas)
NA FEIRA
mulher na feira entre peixes cortados
nos jornais do dia o sangue embrulhado
mulher e palavras florindo desertos
notícia enguiçada em legumes quietos
mulher na feira entre frutas e céu
desejo mordendo a fome a granel
mulher a girar o corpo tão belo
solar perfume de abismo amarelo
ENGOLE O PEIXE COM A ESPINHA
e tocarás a guelra de Deus
aprende todas as palavras
antes de reduzi-las a Uma
ser infinitas palavras
não precisar de Nenhuma
Extraídos de PONTE DE VERSOS: uma antologia carioca – 4 anos. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2003.
POEMA
A paisagem não vale a pena.
Pesa dizê-lo assim tão duramente,
mas que posso fazer contra os mascarados
que penetraram os altos muros
e que agora coabitam os aposentos desolados?
Já não vale a pena a manhã,
Os embuçados chegaram em surdina
e foram destroçando todos os pilares,
todas as primaveras, as lúcidas esperanças,
vultos tão horrendos que paralisaram o dia.
A noite não significa mais nada.
As casas dormem e não significam nada.
O vento cortou-se em mil fatias de desespero.
Que dimensão canta além da treva,
a face repousada, os olhos claros?
De O misterioso ladrad de Tenerife (1972)
Engole o peixe com a espinha
e tocarás a guelra de Deus
aprende todas as palavras
antes de reduzi-las a Urna
ser infinitas palavras:
não precisar de Nenhuma
De Restos & estrelas & fraturas (1975)
NOTÍCIAS DO SILÊNCIO
liberdade é o ccete
precisamos é de pão.
nem só de paraíso
morre o homem
cancerado coração.
democracia tudo bem
e o menino sem saliva.
na noite dos embusteiros
cultura posta a porrada
nas tripas da Rotativa.
enquanto os donos da esquerda
se chupan com os da díreíta
o pássaro não sonha o vôo
a vida morta na merda
corno um carrasco á espreita.
(De Ossos do paraíso, 1981)
v
Quando o limite é rompido
e nenhuma astúcia há
que oculte o grito;
quando a vertigem se espalha
nos tapetes do salão
nenhuma máscara no coração;
quando a verdade do homem
não cabe nos manicômios
tintas ossos armas sonhos;
quando a segurança for perfeita
(todos desfilando sonâmbulos
À frente de um sol acorrentado)
o que explodírá de repente
cântaro de luz crânio aceso
vento lustral:
(De Tudo nenhum, 1985)
JAM SESSION
(2)
uma dor mineral, surda há milênios, conduz
a frase, cuspe contra a luz, palheta
vibrando um pulmão de estrelas, esta dor
ancestral, muda bá milênios, arquiteta
a frase, saliva crispada em blues, fricção entre som
e sangue ardendo urna alma de vertigens, esta dor
animal, cega ha milênios, a explodir
o casulo, gomo de música estalando
entre luz cuspe metal memória,
lama aos poucos recobrindo o aposento deserto
(De Avenida Eros, 1992)
HENRIQUES NETO, Afonso. Abismo com violinos. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1995. 39 p. ilus. 14x20,4 cm.
LOGO LOGO
vamos rapidamente enterrá-la para logo logo esquecê-la
é terrível demais sabermos a Amiga com tanto breu nos lábios
onde amor entalhara um sol de violinos
todos estupidamente aqui a enterrá-la a lamentá-la
de forma rápida para que o desespero seja apenas o pássaro
a riscar grito de azul a cólera do ar
(logo ela que não aceitaria esta noite infinita
sem esmurrar os deuses do vazio
agora é oca cerimônia em nossos ouvidos cegos)
cada um de nós a empurrar a seu modo a Amiga para o fumo
de tanto frio que flores não sonham e dolorosamente se matam
antes do anoitecer
enquanto as pupas vermelhas cospem os novos orvalhos
na manha que se assemelha ao estampido de casulos estuprados
onde vocês enfiaram a Amiga reduziram a Amiga ao espaço
da podre asfixia
para que o desespero seja a rápida crispação dos uivos
do caixão trancado do corpo arremessado dos solavancos do carvão
se da Amiga arrancaram o coração e todo o desejo imenso
a brilhar asperamente no útero de galáxias atapetado de mortos
HENRIQUES NETO, Afonso. Tudo, nenhum. São Paulo: Massao Ohno editor, 1985. s.p. (Coleção Jubileu, 1) 14x21 cm. Tiragem: 700 exs. Col. A.M. (EA)
RADIAÇÃO
a mecânica desses jardins em nenhum relógio
se revela, ao modo de bruxos na frase
do livro feito areia do céu onde sonhamos
a palavra do anjo, a sílaba do tempo,
o incomunicado silêncio de costas
para as constelações do azul inumerável
falo das substâncias que se roeram em nós,
corpos amigos em sepulturas brancas,
falo deste sono que meu pai cravou
em minhas costas e que cravo nas costas
de meu filho, à maneira de asas, talvez anjos,
]á vos disse, este jeito de sorrir
e amar o humano, herança do que me resta
CORRENTE
ramada de luz, engaste furta-cor
de ar e pensamento claro, passagem
entre espelhos, pedrarias, múltiplo
destino na universal correnteza,
rara certeza de um abismo sem
memória, dança invisível, lanças
com que se tangem rebanhos
em campo mítico, cajado de farpas
e delírios, romance à flor
da manhã, espuma de aurora,
galos gelados de amanhecer e tempo,
ossos expostos no altar, e vácuo,
e recuar às eras do infinito
ardendo nesta carne tão finita,
tão dolorosamente inflamando a efígie
que se consumirá nos astros, refúgio
extremo, solidão dos pássaros sem
pouso, quando universos se anulam,
mente e cosmo explodindo realidade,
ramada de luz, espelhos conflagrados,
ruivos, roucos uivos, desespero árduo
HENRIQUES NETO, Afonso. Uma cerveja no dilúvio. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011. 180 p. 14x21 cm. ISBN 978085-7577-773-2 Col. A.M.
POETA
a leste
nasço
sonhado em palavras
ao norte
cresço
crucificado em palavras
ao sul
esmaeço
alucinado em palavras
a oeste
esqueço
secreta galáxia
-
AZOUGUE 10 Anos. Org. Sergio Cohn. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004. 48 p. Capa dura. 16 x 24 cm.. ISBN 85-88338-38-6
Ex. bibl. Antonio Miranda
quase cinza
eu sei onde ladram os ventos pelos ladrilhos
dos mistérios inexistentes.
eu sei de que matéria esta sensação de derrota
é feita, moldada, entre instrumentos de tortura
e pálpebras e espelhos amassados.
eu sei dos que falam no escuro a flauta da voz
das fábulas.
eu sei através do vídeo o vácuo do sangue atrás e além
da imagem, violentos planetas vomitando o drama.
eu sei as tartarugas infinitas.
os bodes expiatórios.
os lavabos cheios de unhas vivas.
a eternidade do gesto humano
morrendo no longo tombadilho.
sei das certezas e incertezas verdes.
seio do resumo de tudo dançando na chuva mais cotidiana.
só não sei de teu sorriso se diluindo em nuvem.
só não se de teu corpo quase infantil
de mulher amanhecida.
só não sei do timbre de tua voz
entre borboletas e musgas fluindo do único verbo.
só não do opalescente rastro de teus pés
entre cachoeiras apagadas.
só não sei da galáxia a resumir vazia
o silêncio mortal de tua alma quebrada.
ai de mim
que eras ouro e breve
.
discurso
nada existe, celebremos
a alegria.
o nascer e o morrer
não nos acontece.
só para os outros
somos um espetáculo.
há vento em excesso
pelos buracos da linguagem.
um jardim muito espesso
labirinto de imagens sobre natais de fumaça.
nada existe, celebremos
aventura.
tudo se instala
o sentido esvaziou-se do oceano
praias da totalidade.
o que não existe
celebra a concretude.
é grave a pedra
a pele desgarrada
o esqueleto do silêncio.
lábios se tocam em alegria
beijo seco
jardim de séculos.
quase nenhuma fala
ninguém
mas os caminhos.
recordemos:
infância veloz
olfato de espantos
estátua ardente arfando
no sonho.
apenas não há
ninguém
mas os espaços
(apenas o já nascido
previamente ido).
infinito buraco sem tempo
celebração.
*
Página ampliada e republicada em dezembro de 2022
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TEXTOS EN ESPAÑOL
Traducción de Adolfo Montejo Navas*
AFONSO HENRIQUES NETO
(Belo Horizonte, 1944)
De familia de poetas (nieto del simbolista Alphonsus de Guimaráens e hijo de Alphonsus de Guimaráens Filho), puede ser considerado un rara avis dentro de la poesía de la década de 1970, y al mismo tiempo, digno representante, pues combina la voz de la calle con sintonías camonianas y un cierto «surrealismo mineiro», que da a su poesía un canto fuertemente alegórico, medio caos y medio mundo posible. Sus últimas producciones continúan demostrando su firmeza y sofisticación estilística, así como la reevaluación crítica de los periodos recientes de la poesía de Brasil.
OBRA POÉTICA: O misterioso ladrao de Tenerife, 1972 (con Eudoro Augusto); Restos & estrelas & fracturas, 1975; Ossos do paraíso, 1981; Tudo nenhum, 1985; Avenida Eros, 1992; Abismo com violinos, 1995; Eles devem ter visto o caos, 1998.
Portada de la edición de
O MISTERIOSO LADRÃO DE TENERIFE
de EUDORO AUGUSTO e AFONSO HENRIQUES NETO
Goiânia: Oriente, 1972 - 78 p.
POEMA
El paisaje no vale la pena.
Pesa decirlo así tan duramente,
pero ¿el qué puedo hacer contra los enmascarados
que penetran los altos muros
y que ahora cohabitan los desolados aposentos?
Ya no vale la pena la mañana.
Los embozados llegaron en sordina
y fueron destrozando todos los pilares,
todas las primaveras, las lúcidas esperanzas,
bultos tan horrendos que paralizaron el día.
La noche no significa nada más.
Las casas duermen y no significan nada.
El viento se cortó en mil lonchas de desesperación.
¿Qué dimensión canta más allá de la tiniebla,
la cara reposada, los ojos claros?
De O misterioso ladrad de Tenerife (1972)
Engulle el pez con la espina
y tocarás las agallas de Dios
aprende todas las palabras
antes de reducirlas a Una
ser infinitas palabras:
no necesitar Ninguna
De Restos & estrelas & fraturas (1975)
NOTICIAS DEL SILENCIO
libertad el carajo
necesitamos pan.
no sólo de paraíso
muere el hombre
cancerado corazón.
democracia vale sí
y el niño sin saliva.
en la noche de los embusteros
cultura metida a porrazos
en las tripas de la patativa*.
mientras los dueños de la izquierda
se chupan con los de la derecha
el pájaro no sueña el vuelo
la vida muerta en la mierda
como un verdugo al acecho.
(De Ossos do paraíso, 1981)
* Ave canora de plumaje gris de América del Sur.
V
Cuando el límite es quebrado
y ninguna astucia hay
que oculte el grito;
cuando el vértigo se esparce
en las alfombras del salón
ninguna máscara en el corazón;
cuando la verdad del hombre
no cabe en los manicomios
tintas huesos armas sueños;
cuando la seguridad sea perfecta
(todos desfilando sonámbulos
delante de un sol encadenado)
es que de repente explotará
cántaro de luz cráneo ardiente
viento austral:
(De Tudo nenhum, 1985)
JAM SESSION
(2)
un dolor mineral, sordo hace milenios, conduce
la frase, escupe contra la luz, paleta
vibrando un pulmón de estrellas, este dolor
ancestral, cambia hace milenios, arquitecta
la frase, saliva crispada en blues, fricción entre sonido
y sangre ardiendo un alma de vértigos, este dolor
animal, ciego hace milenios, a explotar
el capullo, embrión de música estallando
entre luz escupe metal memoria,
lodo poco a poco recubriendo el aposento desierto
(De Avenida Eros, 1992)
*De Correspondencia celeste. Nueva poesía brasileña (1960-2000). Introducción, traducción y notas de Adolfo Montejo Navas. Madrid: Árdora Ediciones, 2001 – Obra publicada com o apoio do Ministério da Culta do Brasil.
*Nota: o tradutor Adolfo Montejo Navas é amigo comum nosso com Wagner Barja, e o convidamos a participar da exposição OBRANOME 2 no Museu Nacional de Brasília, durante a I Bienal Internacional de Poesia de Brasília 2009. Montejo Navas prometeu-nos suas traduções ao castelhano e só na Espanha, em viagem, é que conseguimos os originais que estamos divulgando parcialmente no nosso Portal de Poesia Ibeoramericana, com os agradecimentos.
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