ABEL SILVA
“Poeta, Ael Silva surgiu no final dos anos 60, apresentado por Ziraldo no jornal O Pasquim. O primeiro livro, o romance O afogado, foi editado em 1971, seguindo depois um volume de contos e três livros de poesia. Letrista consagrado, é autor de sucessos como Festa do interior e Jura secreta, de onde saiu o verso que dá título a este livro.” (...) “Criador de uma “poesia que se comunica e encontra expressão natural em música”, segundo Carlos Drummond de Andrade; “Neomodernista surpreendente de cuca voadora”, como o definiu Glauber Rocha; “tem marca própria, uma visão poética original”, densa, mas cheia de alegria de viver e de um lirismo contemporâneo e sensual”, de acordo com Ana Maria Machado; “sensibilidade polifônica, disciplinada e dançarina”, no dizer de Heloisa Buarque de Holanda, Abel Silva formou-se em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é professor da mesma universidade,além de ter lecionado na PUC do Rio. Foi editor da revista de poesia Anima, ao lado de Capinam, entre 1974 e 1975, e editor de cultura do jornal Opinião.
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De
Abel Silva
SÓ UMA PALAVRA ME DEVORA
Poesia reunida e inéditos
Rio de Janeiro: Editora Record, 2000
252 p. ISBN 85-01-06019-4
LOCAL
De onde me viria
esta história de o amor
ser de partida?
E esta agonia,
o inquirir de cada olhar
o revés
do esquecimento?
Minha praia é esta
meu convés o litoral
eu sou a minha nau
e o meu descobrimento.
Eu não conheço a dor dos navegantes
nem as areias escaldantes
dos salvados do mar...
Se sou assim desde o primeiro dia
por que fugir de mim
em travessia?
GALO CANTANDO
Tem tempo que não ouço um galo
cantando na madrugada
um galo chamando o dia
dentro da noite calada
Seu canto marcando o terreno
de sua própria ousadia
entre a sombra e o clarão
na noite a sua vigia
Canto que puxa o tempo
de dentro do poço escuro
sangue de um outro dia
carne de um outro futuro.
ASAS
O que este punhal tem de ave
são asas da imaginação
a dor voa mas volta sempre
e pousa em meu coração.
Voa gaivota breve, voa leve
que o mar tem alma secreta
e guarda a carne dos peixes
a solidão do poeta.
(Musicado por Fagner)
VELHOS II
Para onde vão os velhos brasileiros?
Os velhos paraíbas, as velhas prostitutas,
os velhos camelôs, o Dr. Rubis do Flamengo,
os velhos figurantes das chanchadas que voltam aos vídeos
domingueiros, onde fazem agora as
caretas da velhice?
Os velhos músicos de boate,
as vedetes dos últimos degraus, vão para onde?
Quando a vida derrete e despenca
para onde vão os velhos vendedores de chica-bom?
Eu não quero saber do destino
dos garfos
facas
dentes
cabelo
o menino que fui.
Quero é saber: para onde vão os velhos brasileiros?
SUICIDA
Deste lado
de meu tormento
no limbo penugem e morno vento
sou o que sempre fui
menos a dor e as perguntas
mais o esquecimento.
SILVA, Abel. PoemAteu. São Paulo: 7Letras, 2011. 148 p. 16x23 vm. ISBN 978-85-7577-777-0 Foto do autor aos 4 anos de idade, na contracapa. Col. A.M.
O MERGULHADOR PREVISÍVEL
Sentir medo
do que te contem
porque és em segredo
o que te lança além
só o possível te acalma
não tens fôlego nem alma
de mergulhador
e quando voltas da procura rasa
os olhos explodindo de terror
e quando te cegas
em busca de luz
boias sobre as águas
ondas verdeazuis,
nadas, nada, nadas
e ao sal, enfim, a água
te reduz.
NÃO HÁ CAMINHO?
Não há caminho
sou eu que faço
mas que vaidade!
Caminho há
mas não vou por lá
ou quando vou,
vou com meus passos
pois não é o caminho
que me faz andar
mas os meus pés
que passo a passo
levam meus passos
a passear.
BANDO – Número Dois. Coordenação Sérgio Bessa – Luiza Nóbrega. Capa Sérgio Bessa. Brasília: Thesaurus Editora e Sistemas Àudio Visuais, s. d. s.p. Ex. bib. Antonio Miranda
CÉLULAS POÉTICAS
O conceito de "células poéticas" me foi dado por João Donato.
Ele guarda fitas e fitas com trechos musicais, toques, uma ou
outra seqüência de acordes guardados nos estúdios, antes que
o técnico de som grite, "vamos lá Donato". Depois, ao acaso,
ele tira uma dessas fitas e ouve — às vezes, daí sai uma música
nova, um anova inspiração, ou nada. É a acupuntura musical do
mestre. O que passo pra BANDO são "cédulas poéticas". Toques
do meu trabalho.
I Samba canção
Desde quando a consciência
é uma tristeza
que se alastra pelo corpo feito câncer?
Bate o sol
na minha cabeça
no mesa de Agosto
na cidade do Rio
Às vezes também sinto frio.
II Billie
Toda a questão
é viver o que for necessário
e manter a voz
criança
III Cidade
O Sr. Passado
morreu atropelado
e foi enterrado
como indigente.
O Sr. Passado
não tinha parentes.
IV Vermelhamente
Vontade de juntar pessoas
sem festa
apenas corações energéticos
capazes da invenção de alguma alegria
e as crianças dormindo
pelos cantos da casa.
Enquanto por trás do Corcovado
vermelhamente
nasce outro dia.
V Cochicho
Um cochicho breve
um olhar moreno
tarde azul
será ela uma havaiana
serei eu um mouro blue?
*
Página ampliada e republicada em fevereiro de 2023
Página publicada em julho de 2010, ampliada e republicada em outubro de 2013. |