H. DOBAL
(1927-2008)
Encontro num sebo de calçada no Setor de Diversões Sul, em Brasília, o livro Gleba dos ausentes — Uma antologia provisória (2002, Livraria e Editora Corisco, Teresina-PI), do poeta piauiense H. Dobal*. A capa num azul, parecendo um barco navegando no céu, ou no desperdício do tempo. E penso no tempo que desperdicei em não aproveitar a presença carinhosa deste poeta, que trabalhava aqui em Brasília, no mesmo setor em que encontro o seu livro. Visitei-o uma única vez quando ele trabalhava naquele setor, numa repartição do Ministério da Fazenda. Em seguida, ele me mandou uma carta calorosa sobre meu livro que tinha deixado com ele.
Trata-se de um poeta de visão especial sobre o mundo. Destes poetas flaneur da memória. Destes poetas que estão sempre passeando sobre a superfície do mundo, e a sua poesia nos leva a passear com as suas palavras.
A apresentação da antologia é de H. Paulo Nunes, que assinala a certa altura sobre H. Dobal: “...um nome, dos maiores de nossa cultura; uma obra, das mais representativas da poesia de língua portuguesa; e um público cada dia mais exigente e interessado em seus livros”. Edmilson Caminha, também piauiense, em artigo que escreveu sobre o poeta, diz que “os versos de H. Dobal são daqueles que, sozinhos, valem por uma literatura”.
H. Dobal nasceu em Teresina (PI) em 1927. Bacharel em direito, funcionário público, residiu em Brasília, Londres e Berlim.
(Salomão Sousa. Brasília, 2/5/2007)
*Hindemburgo Dobal Teixeira
Bibliografia: O Tempo Conseqüente (estréia, 1966); O Dia Sem Presságios (1970), Prêmio Jorge de Lima do INL; A Viagem Imperfeita (1973); A Província Deserta (1974); A Serra das Confusões (1978); A Cidade Substituída (1978); Os Signos e as Siglas (1986); Uma Antologia Provisória (1988); Cantiga de Folhas (1989); Roteiro Sentimental e Pitoresco de Teresina (1992); Ephemera (1995); Grandeza e Glória nos Letreiros de Teresina ( 1997); Lírica (2000); Um Homem Particular (contos -1987, Coleção Contar, vol.4, 2002); Gleba de Ausentes -Uma antologia provisória 2002 - ano do sesquicentenário deTeresina.
Veja também: TEXTOS em PORTUGUÊS / en FRANÇAIS
CHUVA
A chuva cata segredos
nas folhas vivas da tarde.
O leve passar do vento,
o lento passar do tempo
nas folhas vivas da tarde.
E a chuva a chuva,
as águas doces da chuva,
no lento apodrecer
das folhas mortas da tarde
vão despertando os segredos da vida.
CAMPO MAIOR
Ai campos do verde plano
todo alagado de carnaúbas.
Ai planos dos tabuleiros
tão transformados tão de repente
num vasto verde num plano
campo de flores e de babugem
Ai rios breves preparados
de noite e nuvem. Ai rios breves
amanhecidos na várzea longa,
cabeças d’água do Surbim
no chão parado dos animais,
no chão das vacas e das ovelhas.
Ai campos de criar. Fazendas
de minha avó onde outrora
havia banhos de leite. Ai lendas
tramadas pelo inverno. Ai latifúndios.
FACTUS EST
O que fez o verão também fez
esta água parada água de mal viver.
Fez o dia de cacto e macambira, o dia de sono e sol
sobre a sombra dos pequizeiros. Fez a luz nos olhos
das onças pretas. Os bichos bravos
pisando macio nas folhas secas. As passadas fundas
na areia das trilhas
onde os comboios de jumentos
levaram suas cargas
de carne-seca, farinha e rapadura.
O que fez da vida a selva escondida nos troncos
sob o sol. Fez os olhos da pedra
que vence os verões. Fez as palhas da carnaúba
e as águas cortadas
águas mornas
água de barro
água de cacimba
que a sede não refuga.
O que parou as águas fez irreal este silêncio
dos chapadões. Fez os bichos obstinados
de sol e de poeira: as cabras as formigas
os cupins o homem sóbrio
e os seus dias de mal viver.
RUÍNAS
Estas velhas paredes não confessam
à brisa sem memória os seus segredos.
A pedra construída sobre a pedra,
numa estranha argamassa reforçada
por suor de escravo e óleo de baleia,
como se alguém quisesse levantar,
contra o sereno da noite,
contra a ferrugem do mar,
uma alvenaria libertada
de tudo o que a morte corrompe.
Mas pouco permanece. Estas paredes
vão-se abatendo semi-destruídas
pelo puro movimento dos dias.
Bate na tarde um vento claro,
bate no peito uma lembrança
que estas paredes não confessam:
A vida. A mágoa sem remédio. O jogo do amor,
talvez mais difícil naquele tempo.
De
LÍRICA
Editores: Cineas Santos / Marcílio Rangel
Teresina: Oficina da Palavra / Instituto Dom Barreto [2000]
CANTIGA DE VIVER
SOZINHO NA CAMA
UM HOMEM ESPERA SUA HORA.
A INESPERADA HORA DE TANTOS.
A VIDA É UM CANTIGA TRISTE
MAIS TRISTE E À-TOA QUE A DAS ANDORINHAS
— LAS OSCURAS GOLONDRINDAS
TÃO MAL VIVIDA
TÃO MAL FERIDA
TÃO MAL CUMPRIDA.
A VIDA É UMA CANTIGA ALEGRE:
O PRIMEIRO SORRISO DE CADA FILHO
E TODOS OS MICROAMORES
QUE INUTILIZAM
A VITÓRIA DA MORTE.
OS NAMORADOS
ESTA ELEGIA PARA OS NAMORADOS
QUE ANDAM EM SILÊNCIO PELA PRAÇA MORTA,
DE PASSO LEVE, INCERTO COMO O SONHO
A QUE SE ENTREGAM SOLITARIAMENTE.
É TRISTE E BREVE COMO OS NAMORADOS
E O SEU AMOR DE ADOLESCÊNCIA. MORTA
TODA A TERNURA FICARÁ E O SONHO
TAMBÉM SURGINDO SOLITARIAMENTE.
QUE ESTE SILÊNCIO VENCE OS NAMORADOS,
COMO UM AVISO FÚNEBRE E FATAL,
APARECENDO EM MEIO AOS CARINHOS.
LEMBRANDO AMOR E SONHO ABANDONADOS
E O RISO FRÁGIL, RÁPIDO, IRREAL:
“TANTO MAIS JUNTOS QUANTO MAIS SOZINHOS”.
AMOR
NA CALMA DA TARDE
VEM UM PENSAMENTO.
PARTIR PARA SEMPRE.
SÓ. NO ADEUS DO VENTO.
VÃO AS VELAS CÔNCAVAS
SOBRE O MAR ABERTO
VÃO LEVANDO O AMOR
AO DESTINO CERTO;
TURVA CALMARIA
AFUNDA O VERÃO.
NAUFRAGADO AMOR.
O AMOR É SOMENTE
UMAS DESSAS COUSAS
QUE VÊM E QUE VÃO.
REVISTA DE POESIA E CRÍTICA No. 1O – Brasília – São Paulo – Rio -
Setembro 1993 Conselho Diretor: Afranio Zuccolotto, Cyro Pimentel, Waldemar Lopes. 91 p.
Ex. doação do livreiro Brito – DF
POEMAS DE BRASÍLIA
CIGARRA
I
Por toda a tarde
uma canção de cigarra
persegue o verão.
Toda a tarde.
Canto chão.
Canto inútil.
O toque o tempo
da tarde nas janelas cegas
desta arquitetura indiferente.
A leste
a oeste
a germinação dos eixos
a geométrica cidade
plantando espaços nos seus habitantes.
II
Canto chão,
canto inútil.
Nos poços da tarde
o canto claro
sepulta o verão.
SECURA
A poeira do verão
a cinza do verão
cobre os gramados
recobre o coração da tarde.
Os blocos de concreto
contemplam a secura dos gramados.
A secura do céu
contempla esta paisagem pobre
metamorfoseada
pela arquitetura dos palácios.
AS SOLIDÕES JUSTAPOSTAS
O Setor Comercial Sul
O Setor de Autarquias Norte
O Setor de Industria e Abastecimento
O Setor Militar Urbano
toda esta cidade setorizada
recebe agora um banho de verão
recebe
o peso desta luz que tantaliza a tarde
recebe
este pontapé nos colchões do tédio
recene esta sombra nos corações
o suado compasso das solidões
justapostas.
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ANTOLOGIA DE SONETOS PIAUIENSES [por] Félix Aires. [Teresina: 1972.] 218 p. Impresso no Senado Federal Centro Gráfico, Brasília. Ex. bibl. Antonio Miranda
Foto: https://elements.envato.com/pt-br/photos/potro+cerril
O POTRO
Na lembrança de abril relincha um potro
Mal preparado pela chuva nova
E depois corre pelo campo verde
Como espantado pela vastidão.
No chão deste sem fim se perde o potro
Desembestando pela vida afora,
E à noite o seu galope ainda perdura
Em sono e sonho percutindo os cascos.
Mas quando o dia se renova o potro
Trazido pela chuva vem de novo
Correr seu sonho sobre as carnaúbas.
E só relinchos, sem gastar pastagem
Assombração diurna vai ganhando
Outro campo de nuvens e de tempo.
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Página ampliada e republicada em abril de 2023
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Página ampliada e republicada em março de 2023
Página ampliada e republicada em julho de 2009 |