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CLOVIS MOURA

(  Brasil  -  Piauí  )

 

Nascido em Amarante, Piauí. Reside em São Paulo.

 

ANTOLOGIA DE SONETOS PIAUIENSES [por]  Félix Aires.  [Teresina: 1972.]   218 p.     Impresso no Senado Federal Centro Gráfico, Brasília.                                 Ex. bibl. Antonio Miranda

 

        SONETO

“A grande morte, que cada um leva consigo,
é o qual tudo se volta.”                    RILKE

Quando a morte chegar no meu caminho
Vinda da minha vida dissipada
Me encontrará desperto, mas sozinho
Olhando a estrela azul da madrugada.

Quando a morte chegar no meu caminho
Para me constelar num grão de nada
Terei nas minhas mãos o pão e o vinho
Para seguir com ela a longa estrada...

Ah! não me chorem companheiros mortos:
Esperem o meu chegar de olhos perdidos
Que minha nau irá aos nossos portos.

Terei a voz suave como arminho
E beijos nos meus lábios ressequidos
Quando a morte chegar no meu caminho.



MOURA, Clóvis.   ARGILA DA MEMÓRIA.  2ª. Edição.  Capa e ilustrações: Fernando S. Costa.  Apresentação de  M. Paulo Nunes.  Teresina, Piauí: Livraria e Editora Corisco, 1982.   45 p.  ilus. 
No. 10 076
Exemplar da Biblioteca de Antonio Miranda, doação do amigo (livreiro) Brito, em outubro de 2024.

 

 CIDADE MATRIZ

Uma cidade do interior. Não apenas
geografia.  Mas a família, o sangue e eventos.
Aí paramos um dia, no regresso.
Dali saímos um dia, para a posse
que não se realiza.

Margeamos a vida.  E a cidade triste,
decadente, persiste.  Os parentes estão morrendo,
os defuntos repousam lado a lado,
os tatus perfuram o cemitério,
há cheias, invasões, o rio sobe,
chega ao muro dos despojamentos
e a cidade permanece.

Decadente.  Contudo ali temos raízes.
Dali saiu um poeta sorridente.
Morreu doido, contudo deslumbrado.

Morreu louco, nostálgico da serra.

Nos poros da cidade há casas mansas.
Numa nasceu o pai.  Noutra morreu
o avô patriarca.  Sempre estamos
em qualquer parte.  Ali: uma criança
que chorou numa sala, teve cabra
mansa que vinha ao quarto com o seu úbere
cheio de leite para o aparecido.
Uma criança na cidade mansa
e o cemitério triste onde os anus
sujam lápides.  Uma cidade só.
Num mapa sujos.  Num momento imundo.

As moças não se casam.
Fazem crochê e doces.  Salpicadas
de desejos definham.  Vem o moço
de outra cidade.  Namora e desilude.

O rio sem piedade leva os primos
para as cidades grandes.  E aparece
convite para o enlace em outra terra.
Espirais de suspiros.  Depois, rezas
na igreja onde o padre ouve os pecados.

...As andorinhas sujam a hora sagrada.

E a lua nova salpica de lobisomens as
[sombras da gameleiras.



O RIO PARNAÍBA

Gargarejo de mortes de afogado
e brilho de luar sobre o silêncio
ruídos sem barulho de asas brancas
invisíveis na esteira do mistério.

Embarcações fantasmas com seus remos
violentando o espelho da corrente
e a história dos antigos moradores
que perlustraram a estrada do degredo.

Nas margens as perguntas os inquéritos
o tiro a interjeição e a morte cinza:
gargalhada de álcool nas bodegas.

A indiferença escorre como gosma
e o rio na derrota da incerteza
leva faunas estranhas no seu ventre.


CANTIGA DAS PRIMAS NA RUA NOVA

As casas estão debruçadas
sobre o rio que passa.  Uma semente de aurora
nasce às vezes na cidade quando o Prefeito acode
ao seu ofício e manda que se faça o calçamento
da rua
que se veste como noiva.

Minhas primas ainda estão cantando cantiga de
[roda
a rua recém-calçada.
Todos querem passar na rua nova.
E fica batizada:  Rua Nova.
Há mais de trinta anos é Rua Nova.

             MEU BOI MORREU

            
O meu boi morreu.
              Meu avô morreu.
              O peixe do rio,
              meu cuxixo pardo,
              o velho barqueiro,
              a tia com asma,
              um cavalo ruço
              que nunca foi meu,
              minha ama de leite,
              meu galo de briga,
              minha seriema,
              minha espada feita
              de carnaubeira,
              meu medo de fogo
              minha doce espera
              de saber as coisas,
              o dedal do padre
              que fez um dilúvio,
              meu pombo-correio,
              minha prima louca,
              minha tia tísica,
              meus tios reumáticos,
              as rezas do padre,
              as almas penadas
              que me atormentavam,
              as visões noturnas,
              minhas ressonâncias
              de menino fraco,
              meu impaludismo,
              as canções à lua,
              o cheiro do rio
              quando havia cheia,
              minha avó humilde
              numa rede velha,
              minhas tias moças
              sem terem esperanças,
              meus silêncios longos
              de descobrir coisas,
              os navios velhos
              feios e encardidos
              mas iluminados
              pelos nossos olhos,
              o carro-de-boi
              que levou o padre
              para a extrema-unção
              do compadre pobre,
              o fluir das balsas
              e os afogados
              que deixaram os corpos
              para a lua cheia
              estão mortos, mortos:
              — que será de mim?

*
Página ampliada em outubro de 2024.       
          
      

 

*

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Página publicada em abril de 2023

 

 

 
 
 
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