ALCENOR CANDEIRA FILHO
“Embora tenha nascido e vivido em cidades ensolaradas (Parnaíba e Rio de Janeiro), Alcenor Candeira Filho faz uma poesia muitas vezes marcada por toques soturnos, indagações existenciais, deixando a alma vagar “em grandes trevas”. É nesses temas sombrios que o poeta mais se manifesta como cantor de si mesmo. Quando se afasta desse eu poético é para entregar-se ao prazer do exercício de uma poesia asséptica que ele próprio designa como “exercícios de metalinguagem”. Então, como em outras ares em que mergulhe, há sempre o fluxo do ritmo, da musicalidade, do domínio da arte poética como construção técnica. Seu livros mais recente, Seleta em verso e prosa, como diz o título, reúne uma coleção de artigos e poemas que bem o apresentam como prosador amante de sua cidade, mestre de história e técnica literária além de poeta de plena intimidade com a poesia de língua portuguesa, daquela dos primeiros romanceiros até à síntese da práxis.” BENJAMIM SANTOS
Extraído do jornal Bembém, 32, agosto 2010. Enviado por Diogo Mendes Sousa.
MOMENTOS DE ANGÚSTIA
(fragmento)
Estou ouvindo o relógio que dá pancadas;
no entanto, não sei se é dia ou se é noite.
Lá fora, o velho vento volúvel vibra,
vagaroso, qual se fosse um manso açoite.
E enquanto esse barulho funéreo se mistura
com o da chuva que dos céus torrencialmente cai,
minha alma, barco sem vela, vai vagando em grandes trevas
onde cada latejo do meu coração é um ai.
SOS
sempre
sós
como ondas:
ontem hoje após.
sempre
sós
somos:
eu e tu e vós...
quanto
sobra
são
sombras
em torno de nós.
sombras,
só,
quando
e onde:
SÓS! SÓS! SÓS! SÓS!
somos
só
nós
sonhos
enquanto não pós.
SOMBRAS ENTRE RUÍNAS
Sombras e mais sombras
de sombrios olhares
num mundo de ruínas
andam lentamente.
Estão sempre mudas
tristes e cansadas.
E nem sonham mais
com um mundo que seja
menos miserável.
A voz que, aqui,
ali ou acolá,
de quando em vez
se levanta e quebra
a monotonia
grave do silêncio,
logo se esmaece
no deserto imenso.
E só ardentes preces,
ditas em segredo,
dia e noite sobem,
sobem para um céu
mais longe que perto.
DIANTE DA PORTA DA VIDA MORTA
Diante da porta
da vida morta,
devo sorrir
ou devo chorar?
Há deste lado
belas estrelas
que um dia talvez
possa alcançar.
Belas estrelas,
mas que me assombram
e fazem mal
ao meu olhar.
Por trás da porta
da vida morta,
em meio a um branco
transcendental,
o que haverá?
o que haverá?
Belas estrelas
dos meus assombros,
por gentileza
dizei-me vós:
diante da porta
da vida morta
devo sorrir
ou devo chorar?
CARGA
Carrego uma carteira de identidade
e mais outra de motorista
um titulo de eleitor
um certificado de reservista
um cartão de C.P.F.
uma certidão de nascimento
e outra de casamento
um diploma de bacharel
um seguro de vida
(em todos eles ALCENOR RODRIGUES CANDEIRA FILHO)
carrego uma calça
(uns trocados no bolso)
uma camisa
uma cueca
um sapato
muitas chaves
um automóvel
e um relógio
— e mais o peso abstrato da existência.
Página publicada em agosto de 2010;AMPLIADA em janeiro de 2020
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