SALMO DO INSTANTE - III
A Mário Bezerra
O tempo flui, matando o mundo,
deixando atrás as coisas gastas,
infinito desnudo e já vivido.
O tempo flui bebendo o vinho
do céu, do espaço,
e amputando as mãos de Deus.
Gastando o mundo, o tempo flui
enquanto os germes sutis da vida
são triturados à luz do sol.
Vergando de infâncias,
o tempo vai lavando o céu
como uma vidraça, uma mancha
na transparência infinita.
O templo flui,
como uma língua nos carrilhões,
ondas de luz, vozes de morte,
ecos noturnos, vento distante.
Como o momento legado
pelas memórias antigas,
o tempo flui:
a mão amiga que se foi,
a voz ausente, a hora outrora,
a madrugada lenta da alma
— a cor mais íntima que se conhece.
O tempo flui, limpando o mundo
da umidade das criaturas,
desses lugares impregnados
onde os homens se ocultam
da face dura do infinito.
O tempo flui arrasador
sobre as estrelas, sobre os espaços,
deixando apenas a alma de Deus
como a essência sobrevivente.
SALMO A MELQUISEDEQUE
A Nilo Pereira
Se a essência da luz desabrochasse
e se todos os cristais se dissolvessem,
não teriam a luz e o som daquela prece.
Neblinas, íris,
rosas e cores,
Silfos e Elfos,
flautas de prata,
brisas, sonatas,
nada é tão belo como aquela prece:
túnica de luz, cristal e lua
que as mãos sonoras da música tecem.
Ai, nada existe como a imensa prece
do grande solitário cujo nome
nem mesmo os anjos do senhor conhecem.
SALMO DO IMEMORIAL
A Souto Maior Borges
Hora
de amargura quando o céu for negro
de solidão e o meu ser apenas
nódoa de dor perdida para sempre.
Quando as estrelas me voltarem as faces
e a própria tristeza me deixar
e bradar, sobre mim, a eternidade
todo o tempo perdido que vivi.
De mim
memória nenhuma restará.
Nem morrerei, serei abandonado,
quando Deus houver gasto sem piedade
toda a minha pobre criatura.