NUNO GONÇALVES
Nasceu em Recife, mas se considera cearense. Publicou os livros de poesia: Cacos de Cristo, O sol e a maldição, Cartas de navegação e Calabouço de reticências ou a aridez do oceano. De prosa: O rio das onças.
Recebeu o Prêmio Ideal de Literatura com o conto O caminho da novena e com o poema O canto do anjo vermelho.
Graduado em história pela UECE, mestre – na mesma disciplina – pela UFC & doutor em Estudios Latinoamericanos pela Universidad Autónoma de Méxido - UNAM. É professor de história da América na UFRB, e o pai de Marialice.
TEXTOS EM PORTUGUÊS - TEXTOS EN ESPAÑOL
Os três poemas em seguida foram publicados no livro Cartas de navegação:
homem de água ou antigo testamento
Santiago veio aqui.
Inês também.
E Akin.
Os três lhe procuravam.
Você não estava.
Eles se foram e os grilos ficaram.
São muitos.
Acho que foram eles que espantaram a esperança verde da nossa cozinha.
Ou ela morreu.
Ou ela partiu.
Dizem que os grilos trazem sorte.
Dizem que os chineses comem grilos fritos.
Na dúvida comecei a ler um romance oriental.
Ele me trouxe uma tempestade de areia tão fina que parecia grãos de ossos moídos.
Açoitou minha pele.
Me trouxe memórias ruins.
Turvou minha visão.
Mas não apagou o verde que eu trouxe da viagem.
Não dissolveu o sal que veio comigo.
Nem me fez esquecer o sonho em que eu despertava entre afegãos.
Onde é que fica Pasárgada?
Do outro lado da muralha.
Lá eu sou amigo do rei.
Seu nome: Hamurabi.
São suas as moças que acariciam os cabelos dos meus dois demônios.
Onde é que fica a passagem que nos leva ao outro lado da muralha?
Depois da tempestade.
Em Pasárgada deve haver justiça.
Amor sem crueldade, amor sem escrotidão.
Em Pasárgada deve haver justiça.
Será essa a sorte que trazem os grilos?
Tapetes ao chão.
Procissão de zumbis.
Caminhamos todos ao altar onde se venera a justiça.
Rogando por uma paz que não seja submissão.
Amém.
maturi
Escreveu o próprio testamento e foi viajar.
Deixou o verde do mar entranhar mais dentro do que todas as vezes.
Tão dentro que parecia fora.
Reencontrou uma amiga depois de anos.
Não disse que ela estava igual.
Não disse que ela estava linda.
Não disse nada além de um hola.
Ela estava de passagem.
Ele era demasiado tímido.
Rasgaram com as mãos uma folha seca de cajueiro:
em mil pedaços.
Armaram sem pressa o quebra-cabeças:
enquanto o chá cozinhava
enquanto se acendiam as velas.
Apesar de não ter dito pensou:
¡hermosa!
Estamos todos de passagem.
Nos desfazendo do que não nos pertence.
Não foi a única amiga que reencontrou.
Houve outra.
Que dividiu tantinho da água do seu mar com o rio dele.
E que com a ponta do dedo untou com sal sua língua.
Houve outra.
Que o ensinou sobre como abraçar quando o abraço pode ser o último.
Sobre como abraçar quem há demasiado tempo não se abraçava.
Houve outra que o chamou à calçada
e lhe segredou umas faísquinhas de estrelas provavelmente já mortas.
O tempo não alcançou a chegança das faisquinhas das por nascer.
Houve outra que lhe chamou amigo e lhe disse:
Estamos jovens lindos e felizes.
Houve outra que também estava apressada e se dizia cansada.
Deixou em suas mãos seu filho e foi estirar o espinhaço.
O testamento adquiriu a forma de romance.
Toda forma expressa diretamente contradições insolúveis do cotidiano.
Todo testamento é uma maneira arbitrária de dar cabo das muriçocas infernais.
Se existir outra coisa depois
já se tratará de outra coisa.
Quem assim o disse trazia olhos e aura de gente renascida.
Uma viagem é só uma viagem e nada mais.
Uma maneira de ser verde.
Uma maneira de ser sal.
Uma maneira de – sem deixar de ser rude – deixar-se afagar.
Uma maneira de – sem deixar de ser dor – tear com precisão e delicadeza a teia da beleza.
Uma maneira de esquecer todas as vezes que a morte lhe alcançou o calcanhar.
Uma maneira de ensinar Maria
a não esquecer de regar as flores
nascidas no mausoléu
(outrora revestido de azulejos azuis)
onde repousam nossos ancestrais.
Os fantasmas devoram maturis em seus aniversários.
Eles sim sabem que todo reencontro é só uma forma da despedida.
E que é necessário celebrar toda e qualquer despedida.
semblanza de mi abuelo
hoje, ainda mais que sempre, sua voz em minha voz sussurra
sua alegria, em minha garganta, como um gigante azul desperta
suas mãos trêmulas já nas minhas reverberam
seu canto rouco em meus gestos loucos reencarna
hoje, ainda mais que sempre, sei que fui seu último sonho e pesadelo
sua última tempestade e criação
tão bem recordo suas sentenças sobre a morte
seu hálito de amor e cachaça coagulada
sua saudade exposta às vésperas sobre a mesa:
a cidade desaparecendo
as pessoas desaparecendo
os sentidos aturdidos
e o tempo apodrecendo à luz das lamparinas mortas hoje, ainda mais que sempre, pressinto teu olhar pousando sobre minha filha
teus rancores corroendo a vastidão oferecida
e a desmedida do remorso incauto
abarcando com suas asas torpes
as fronteiras acesas de nossa imensidão
hoje, mais que nunca, o vento me traz tua imagem bíblica
faróis insanos, turbulentos mares
em meu peito segue a arder tua velha insígnia
e como as bestas do zodíaco alquímico
transfiguro-me e me dissolvo
em teu apocalipse: meu gênesis,
meu infeccionado chão.
desapontamento antibiográfico IV: a queda do céu, gente com buraco no peito & escadas para o nada
Quando abri os olhos
já era tarde:
o céu já havia caído
e o buraco já estava lá
– cinzas, ossos, perfume & seda –
era tudo que restava
um rio calado, uma cidade enfadada
– cílios de arame farpado –
na boca até o mel sabendo a amargo...
quando abri os olhos
os mortos já estavam mortos
o fogo já em estado fátuo
– alma tem tempo próprio
se demora pra assentar coisas de dentro
limpar os trastes, arrumar a casa
se desfazer das tranqueiras
jogar fora o lixo acumulado nas entranhas
– alma vive longe
é o jardim que floresce quando machucado...
quando abri os olhos
esses cílios de arame farpado já estavam aqui
– cinzas, ossos, perfume & seda –era tudo que restava
onça ainda cantava
pedra ainda ensinava
e distante daqui,
bem distante
corria um rio que ainda marulhava
respirava uma cidade que ainda dançava
&
o céu já tivesse caído
e o buraco no peito fosse irremediável
havia um menino que paria borboletas
tinha na pele todas as idades
e insistia em brincar de
– com escaravelhos & estrelas –
construir escadas
que
invariavelmente
levariam outra vez
ao nada de sempre...
o canto do anjo vermelho
um blues esfarinha os ossos da saudade
apenas o temor me abriga
nessa noite sem esperança
onde estão as mulheres-verdes ?
onde estão as mulheres-algas ?
onde está o gibão anti-radioativo
para desarmar a cabeça-dinamite do século ?
a estrada tem fome
talhos & atalhos para os príncipes da paranóia
: são dez e cinqüenta e quatro
, posso morrer confortado pela ausência de olhares
estou em casa, meu sono está morto
& as mentiras soterradas em minhas unhas
um blues é um atalho
para a sobrevivência ou o esquecimento
o amor é a violência do assassinato
o desespero é o sangue do misticismo
assim como a noite é a estrela da fuga
& o escuro um daimon arcaico
há dias que estou em transe
aspirando o álcool prostituído dos postos de combustível
dirigindo meus sonhos no interior da valise das caveiras
& ruminando essas digitais impressões minerais
há anos que estou amedrontado
& nenhum raio me guia para nenhum território pacífico
ainda posso suicidar este corpo que não me pertence
mas prometi ao deus dos espelhos que não o faria
descobri essa arma enterrada nas cinzas de meus pulmões
morrerei como uma coruja que antes do parto tratou de profetizar sua própria morte
ou como um galo que pela manhã canta o velho sol esquecido
em minhas veias nenhuma morfina foi encontrada
nenhum metal precioso ou equivalente
em minhas veias foi encontrada a ira & a herança
a covardia e a nudez de um anjo
o mar se curva perante a aurora
no altar de meus pesadelos
só há agora pecados & automóveis
& a poeira das vestes desfiguradas
ruge a sombra ruge a fera
ruge o sino assombroso da catedral
nunca serei fuzilado
a menos que o crepúsculo se instale no coração do meio-dia
meus braços foram criados para empunhar pás de areia
para enterrar entes queridos
& se meu hálito recende à cachaça
isso é melhor que não ter hálito nenhum
espectros de caleidoscópios girando entre ressentidas estrelas
qual os ponteiros de um relógio fúnebre
ou de um mirar vazio no horizonte
assim é a vida: sina de telefone que toca insistentemente sem que ninguém atenda
nos andes o frio me aguarda
sóbrio & sombrio como uma língua desconhecida
em busca de um beijo ou da garganta aberta do inimigo
somos todos a suavidade de um deus que dança
– escatológicos signos de uma relva que amanhece –
antes mesmo de nascer
medo das águas II
suas barbas de netuno, sua eterna tranqüilidade
chegando até minha casa através de um sonho
convivendo com bicicletas, espaguetes e cartazes de proibido fumar
com duas meninas gêmeas e peças de artesanato expostas
numa bela ilha no sul da manhã
suas barbas de netuno, sua aparente tranqüilidade
chegando até mim nas areias do deserto
arrastada pelos ventos delírios
convivendo com os besouros que coleciono na caixa de fósforos
e com meus velhos sapatos negros
fostes também um andarilho
mas voltastes para morrer em casa
na curva que liga nossa aldeia ao mar
às águas salgadas
aos sonhos, aos delírios, à espuma
que as asas agora te sirvam
nessa longa travessia
decisiva jornada
ficarei com suas barbas de netuno
sua eterna e aparente tranquilidade
com meus besouros, meus sapatos & meus sonhos
sem o medo da morte que nos espreita atrás da árvore
na curva que nos separa de nossa aldeia
na curva que nos separa das águas salgadas do mar.
o silêncio dos sonhos
tudo que é aspira à morte
do que já foi ou vem-a-ser
tudo passa e nada é
as estações, o amor, as fábulas
o ódio, a ira, a raiva
murcharam as flores do mal
e os cânticos de Maldoror
morreu Rimbaud e a juventude
entre escravos e armas
entre escarros e almas
entre
veja minha casa, meu pasto
não há nada
desta pedra não se tira leite
este é o deserto, o esquecimento
este é o mistério
não querer mais, querendo
nada saber, sabendo
germinar na terra infértil
agir na hora imprópria
sonhar o silêncio que nos sonha
a invenção da roda
da fortuna
&
do destino
TEXTOS EN ESPAÑOL
Traducción de Jonh Galán
canto del ángel rojo
un blues desmorona los huesos de la nostalgia
apenas el temor me abriga
en esta noche sin esperanza
¿dónde están las mujeres-verdes ?
¿dónde están las mujeres-algas ?
¿dónde está el jubón anti-radioactivo
para desarmar la cabeza-dinamita del siglo ?
la carretera tiene hambre
tajos & atajos para los príncipes de la paranoia
: son las diez y cincuenta y cuatro
, puedo morir reconfortado por la ausencia de miradas
estoy en casa, mi sueño está muerto
& las mentiras enterradas en mis uñas
un blues es un atajo
para la supervivencia o el olvido
el amor es la violencia del asesinato
el desespero es la sangre del misticismo
así como la noche es la estrella de la fuga
& lo oscuro un daimon arcaico
hace días que estoy en trance
aspirando el alcohol prostituido de los puestos de combustible
dirigiendo mis sueños a las valijas de las calaveras
& rumiando estas digitales impresiones minerales
hace años que estoy amedrentado
& ningún rayo me guía hacia ningún territorio pacífico
aún puedo suicidar este cuerpo que no me pertenece
pero prometí al dios de los espejos que no lo haría
descubrí esta arma enterrada en las cenizas de mis pulmones
moriré como una bruja que antes del parto trató de profetizar su propia muerte
o como un gallo que por la mañana canta al viejo sol olvidado
en mis venas ninguna morfina fue encontrada
ningún metal precioso o equivalente
en mis venas fue encontrada la ira & la herencia
la cobardía y la desnudez de un ángel
el mar se inclina ante la aurora
en el altar de mis pesadillas
sólo hay ahora pecados & automóviles
& el polvo de las vestiduras desfiguradas
ruge la sombra ruge la fiera
ruge la campana pasmosa de la catedral
nunca seré fusilado
a menos que el crepúsculo se instale en el corazón del mediodía
mis brazos fueron criados para empuñar palas de arena
para enterrar seres queridos
& si mi aliento trasciende a cachaza
es mejor que no tener ningún aliento
espectros de caleidoscopios girando entre resentidas estrellas
cual las agujas de un reloj fúnebre
o de un mirar vacío en el horizonte
así es la vida: suerte de teléfono que suena insistente sin que nadie atienda
en los andes el frío me aguarda
sobrio & sombrío como una lengua desconocida
en busca de un beso o de la garganta abierta del enemigo
somos todos la suavidad de un dios que danza
– signos escatológicos de una hierba que amanece –
aún antes de nacer
miedo de las aguas II
sus barbas de neptuno, su eterna tranquilidad
llegando hasta mi casa a través de un sueño
conviviendo con las bicicletas, espaguetis y letreros de prohibido fumar
con dos niñas gemelas y piezas de artesanía expuestas
en una bella isla al sur de la mañana
sus barbas de neptuno, su aparente tranquilidad
llegando hasta mí en las arenas del desierto
arrastrada por los vientos delirios
conviviendo con los abejorros que colecciono en una caja de fósforos
y con mis viejos zapatos negros
fuiste también un andariego
pero volviste para morir en casa
en la curva que une nuestra aldea al mar
a las aguas saladas
a los sueños, a los delirios, a la espuma
que las alas ahora te sirvan
en esta larga travesía
decisiva jornada
me quedaré con sus barbas de neptuno
con su eterna y aparente tranquilidad
con mis abejorros, mis zapatos & mis sueños
sin el miedo de la muerte que nos acecha tras el árbol
en la curva que nos separa de nuestra aldea
en la curva que nos separa de las aguas saladas del mar.
el silencio de los sueños
todo lo que es aspira a la muerte
de lo que ya fue o viene-a-ser
todo pasa y nada es
las estaciones, el amor, las fábulas
el odio, la ira, la rabia
se marchitaron las flores del mal
y los cantos de Maldoror
murió Rimbaud y la juventud
entre esclavos y armas
entre escupitajos y almas
entre
vea mi casa, mi césped
no hay nada
de esta piedra no se saca leche
éste es el desierto, el olvido
éste es el misterio
no querer más, queriendo
nada saber, sabiendo
germinar en tierra infértil
actuar en la hora impropia
soñar el silencio que nos sueña
la invención de la rueda
de la fortuna
&
del destino
Página publicada em janeiro de 2019
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