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MICHELINY VERUNSCHK
Nasceu em Recife, Pernambuco, em 1972. Mora em Arcoverde, Pernambuco, desde criança. É professora de História e escreve contos, além de poesia. Publicou Geografia íntima do deserto (2003) e com esse primeiro livro foi finalista do prêmio Portugal Telecom.
AMIGA
Amiga,
lavei os pratos,
mas a mágoa
mastigou-me
o inteiro dia
— esse pedaço
de carne crua
com nervos difíceis
aos dentes,
que sou —.
Se ao menos
eu pudesse banhar
meus pés
na bacia de ágata
do meu avô,
não perdoaria tanto
meus sentimentos
mesquinhos
e debruçaria-me
sobre o balcão
sem rir
e seria
mais triste e grave
e, claro, vestiria luto
por tudo
que foi morto
na minha e tua amizade.
Mas, como vês,
Não sei da bacia branca
donde eu sairia
apaziguada.
VIOLONCELLO
A louca dama, nua e fera
deita e luta
com o seu músico:
que a mantendo
por entre as pernas
vai aprendendo
músculo a músculo
o gemer denso
de madeira rouca
a doma intensa
o seco acústico.
O LIVRO
Havia de encontrar
alguma velha ferida
e nela, supurando ainda
teu rosto:
outonos e infernos
esquecidos
entre páginas amareladas
e a dor, essa inútil traça.
ÂMBAR
Um tijolo
sabe a casa
e toda sua
mágica linguagem
de portas,
janelas,
outros tijolos
e espaços vazios.
Sabe a linhagem
e o alinhavo
de seus mortos,
as panteras
fosforescentes
de seus vivos.
Um tijolo
sabe a casa
mesmo que
falem apenas
as ruínas
e mesmo
que se calem,
um tijolo
sempre sabe.
Extraído de
POESIA SEMPRE. Revista semestral de poesia. ANO 9 – NÚMERO 14. AGOSTO 2001. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Ministério da Cultura, Departamento Nacional do Livro, 2001. 222 p. ilus. col. Editor geral Marco Lucchesi. ISSN 0104-0626 Ex. bibl. Antonio Miranda.
Conto
Existem minas
Ao norte de uma grande cidade.
Onde os mineiros
Não vêem a luz
Há pelo menos 25 anos
Dizem que têm
Olhos fosforescentes
Como peixes de regiões abissais.
Dizem que nascem da terra
E se proliferam por bipartição.
Dizem que têm pulmões modificados
E que nunca choram
Porque dói muito.
Mas são homens,
Ainda homens,
Os mineiros do Norte.
Variação e rito sobre uma tourada espanhola
Sobre o branco puríssimo
A rosa negra intumesce:
Seu caule espesso,
Sua pétala áspera,
Sua fúria intensa e violeta.
Porque a cidade é escura.
Porque as esquinas rasgam o passeio
E porque a chuva insiste fria, muito fria.
(Muitos animais
saem de entre as minhas pernas,
eu teria pensado aquela noite.
Hoje não.
Sei que moram também na minha garganta
e deslizam por ela
como o metrô desliza sobre o dia,
repleto de vozes e suores,
sua música polifônica.)
Sim, a cidade é escura.
Mas a arena é clara.
O touro,
Vermelho e arfante,
Pinta a óleo e sangue
O pôr-do-sol
E a tarde emerge entre seio e lábio.
A cidade é escura.
Mas a arena é clara
E a arena banha de festa e luta
Toda a praça
que, luminosa e nua,
Acende,
Uma a uma,
As suas facas.
Página publicada em dezembro de 2009. Ampliada em junho de 2018.
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