Embora tenha concluído o curso de mestrado em ciências sociais na Universidade Columbia — onde foi aluno de Franz Boas, fundador da antropologia cultural — Gilberto Freyre considerava-se, acima de tudo, escritor. E foi como ensaísta que ele projetou-se no cenário nacional: ensaísta à la Montaigne e Bacon.
Mas em 1925 — muito antes, portanto, de distinguir-se com livros como Casa Grande & Senzala (1933) e Sobrados e Mucambos (1936) — Gilberto Freyre
escreveu um longo poema inspirado por sua primeira visita à Cidade de Salvador: Bahia de todos os santos e de quase todos os pecados. Impresso no mesmo ano em reduzidíssima edição da recifense Revista do Norte, o poema deixou Manuel Bandeira entusiasmado. Tanto que em carta de 4 de junho de 1927 escreveu: “Teu poema, Gilberto, será a minha eterna dor de corno. Não posso me conformar com aquela galinhagem tão dozada, tão senvergonhamente lírica, trescalando a baunilha de mulata asseada. S!” (cf. Manuel Bandeira, Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1958, v. II: Prosa, p. 1398).
O poema tem três versões: a primeira foi reproduzida por Manuel Bandeira em sua Antologia dos Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos (1946); a segunda, modificada pelo autor, foi publicada na revista carioca O Cruzeiro de 20 de janeiro de 1942; e a terceira aparece nos livros Talvez Poesia (José Olympio, 1962) e Poesia Reunida (Edições Pirata, 1980).
São evidentes, no poema de Gilberto Freyre adiante reproduzido, as influências do imagismo de Amy Lowell e a enumeração caótica de Vachel Lindsay. O imagismo aparece logo nos primeiros versos:
Bahia de todos os santos (e de quase todos os pecados)
casas trepadas umas por cima das outras
casas sobrados igrejas como gente se espremendo pra sair
[num retrato de revista ou jornal
São ainda mais numerosos os exemplos de enumeração caótica, como nos seguintes versos:
Bahia
Salvador
São Salvador
Todos os Santos
Tomé de Sousa
Tomés de Sousa
Padres negros caboclos
a Primeira Missa
os malês
índias nuas
vergonhas raspadas
candomblés santidades heresias sodomias
quase todos os pecados
ranger de camas de lona
corpos suando de gozo
todos os santos
missa das seis
comunhão
A versão a seguir reproduzida é a terceira, de 1962.
BAHIA DE TODOS OS SANTOS E DE QUASE TODOS OS PECADOS
Bahia de Todos os Santos (e de quase todos os pecados)
casas trepadas umas por cima das outras
casas, sobrados, igrejas, como gente se espremendo pra sair num
retrato de revista ou jornal
(vaidade das vaidades! diz o Eclesiastes)
igrejas gordas (as de Pernambuco são mais magras
toda a Bahia é uma maternal cidade gorda
como se dos ventres empinados dos seus montes
dos quais saíram tantas cidades do Brasil
inda outras estivessem para sair
ar mole oleoso
cheiro de comida
cheiro de incenso
cheiro de mulata
bafos quentes de sacristias e cozinhas
panelas fervendo
temperos ardendo
o Santíssimo Sacramento se elevando
mulheres parindo
cheiro de alfazema
remédios contra sífilis
letreiros como este:
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo
(Para sempre! Amém!)
automóveis a 30$ a hora
e um ford todo osso sobe qualquer ladeira
saltando pulando tilintando
para depois escorrer sobre o asfalto novo
que branqueja como dentadura postiça em terra encarnada
(a terra encarnada de 1500)
gente da Bahia! preta, parda, roxa, morena
cor dos bons jacarandás de engenho do Brasil
(madeira que cupim não rói)
sem rostos cor de fiambre
nem corpos cor de peru frio
Bahia de cores quentes, carnes morenas, gostos picantes
eu detesto teus oradores, teus otaviosmangabeiras
mas gosto das tuas iaiás, tuas mulatas, teus angus
tabuleiros, flor de papel, candeeirinhos,
tudo à sombra das tuas igrejas
todas cheias de anjinhos bochechudos
sãojoões sãojosés meninozinhosdeus
e com senhoras gordas se confessando a frades mais magros do que
eu
O padre reprimido que há em mim
se exalta diante de ti Bahia
e perdoa tuas superstições
teu comércio de medidas de Nossa Senhora e do Nossossenhores do
Bonfim
e vê no ventre dos teus montes e das tuas mulheres
conservadoras da fé uma vez entregue aos santos
multiplicadores de cidades cristãs e de criaturas de Deus
Bahia de Todos os Santos
Salvador
São Salvador
Bahia
Negras velhas da Bahia
vendendo mingau angu acarajé
Negras velhas de xale encarnado
peitos caídos
mães de mulatas mais belas dos Brasis
mulatas de gordo peito em bico como para dar de mamar a todos os
meninos do Brasil.
Mulatas de mãos quase de anjos
mãos agradando ioiôs
criando grandes sinhôs quase iguais aos do Império
penteando iaiás
dando cafuné nas sinhás
enfeitando tabuleiros cabelos santos anjos
lavando o chão de Nosso Senhor do Bonfim
pés dançando nus nas chinelas sem meia
cabeções enfeitados de rendas
estrelas marinhas de prata
tetéias de ouro
balangandãs
presentes de português
óleo de coco
azeite-de-dendê
Bahia
Salvador
São Salvador
Todos os Santos
Tomé de Sousa
Tomés de Sousa
padres, negros, caboclos
Mulatas quadrarunas octorunas
a Primeira Missa
os malês
índias nuas
vergonhas raspadas
candomblés santidades heresias sodomias
quase todos os pecados
ranger de camas-de-vento
corpos ardendo suando de gozo
Todos os Santos
missa das seis
comunhão
gênios de Sergipe
bacharéis de pince-nez
literatos que lêem Menotti del Picchi e Mário Pinto Serpa
mulatos de fala fina
muleques
capoeiras feiticeiras
chapéus-do-chile
Rua Chile
viva J. J. Seabra morra J. J. Seabra
Bahia
Salvador
São Salvador
Todos os Santos
um dia voltarei com vagar ao teu seio moreno brasileiro
às tuas igrejas onde pregou Vieira moreno hoje cheias de frades
ruivos e bons
aos teus tabuleiros escancarados em x (esse x é o futuro do Brasil)
a tuas a teus sobrados cheirando a incenso comida alfazema
cacau.
Extraído de: FREYRE, Gilberto. Bahia e baianos. Apresentação de Edson Nery da Fonseca. Salvador: Fundação das Artes, 1990. 167 p.
De Gilberto Freyre POESIA REUNIDA
Jaboatão, PE: Editora Guararapes - EGM, 2000.
191 p. ilus. col.
"Centenário de Nascimento de Gilberto Freyre"
[Exemplar gentilmente enviado pelo editor Edson Guedes de Morais]
O OUTRO BRASIL QUE VEM AÍ
Eu ouço as vozes
eu vejo as cores
eu sinto os passos
de outro Brasil que vem aí
mais tropicald
mais fraternal
mais brasileiro.
O mapa desse Brasil em vez das cores dos Estados
terá as cores das produções e dos trabalhos.
Os homens desse Brasil em vez das cores das três raças
terão as cores das profissões e das religiões.
As mulheres do Brasil em vez das cores boreais
terão as cores variamente tropicais.
Todo brasileiro poderá dizer: é assim que eu quero o Brasil,
todo brasileiro e não apenas o bacharel ou o doutor
o preto, o pardo, o roxo então apenas o branco
e o semibranco.
Qualquer brasileiro poderá governar esse Brasil
lenhador
lavrador
pescador
vaqueiro
marinheiro
funileiro
carpinteiro
contanto que seja digno do governo do Brasil
que tenha olhos para ver o Brasil,
ouvidos para ouvir o Brasil,
coragem para morrer pelo Brasil
ânimo de viver pelo Brasil
mãos de escultor que saibam lidar com o barro
forte novo dos Brasis
mãos de engenheiro que lidem com ingresias e tratores
europeus e norte-americanos a serviço do Brasil
mãos sem anéis (que os anéis não deixam o
homem criar nem trabalhar)
mãos livres
mãos criadoras
mãos fraternais de todas as cores
mãos desiguais que trabalhem por um Brasil
sem Azeredos, sem Irineus
sem Maurícios de Lacerda..
Mãos todas de trabalhadores,
pretas, brancas, pardas, roxas, morenas,
de artistas
de escritores
de operários
de lavradores
de pastores
de mães criando filhos
de pais ensinando meninos
de padres benzendo afilhados
de mestres guiando aprendizes
de irmãos ajudando irmãos mais moços
de lavadeiras lavando
de pedreiros edificando
de doutores curando
de cozinheiras cozinhando
de vaqueiros tirando leite de vacas chamadas
comadres dos homens.
Mãos brasileiras
brancas, morenas, pretas, pardas, roxas
tropicais
sindicais
fraternais.
Eu ouço as vozes
eu vejo as cores
eu sinto os passos
desse Brasil que vem aí.
PAISAGEM SEXUAL
Maciços de catingueiras
salpicados nos tempos de chuva de vermelhos
ao sol como pingos de sangue fresco:
e de amarelos vivos
e de roxos untuosamente religiosos.
No verão, chupados pelo sol de todo esse
sangue e de toda essa cor
e quase reduzidos
aos ossos dos cardos
e a um mundo de formas esquisitas
de ascéticos relevos ósseos,
de meios-termos grotescos entre o vegetal e o humano,
de plágios até da anatomia humana
mesmo das partes vergonhosas.
Não haverá paisagem como esta
tão rica de sugestões
nem animada de tantos verdes,
tantos vermelhos, tantos roxos, tantos amarelos,
e tudo isso em tufos, cachos, corolas e folhas.
Como os cachos rubros em que esplende a Ibirapitanga
e arde o mandacaru,
como as formas verdadeiramente heráldicas em
que se ouriçam os quipás
Como as folhas em que se abrem os mamoeiro,
Como as flores em que se antecipam os maracujás,
como as manchas violáceas das coroas-de-frade.
TRISTEZA DOS MOSTEIROS ADOÇADA
Tristeza dos mosteiros com seus monges
velhos a meditar no alo dos montes
compensada pela alegria das repúblicas
dos estudantes
dos sobrados das ladeiras.
A gravidade do latim cantado
nos conventos adoçado à noite
pelo som das modinhas das serenatas,
na velha Olinda com os seus doutores,
seus cônegos, seus frades e estudantes.
LITORAL
Praias cheias de mucambos de palha
Rio Tapado, Rio Doce, Quadro, Conceição,
Praia do Janga, Pau-Amarelo.
Principalmente Pau-Amarelo
onde desembarcaram os holandeses.
De Gilberto Freyre TALVEZ POESIA
Prefácio Mário Mota.
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1962. 97 p.
"Talvez essas peças, escritas quando ele ainda não havia estreado em livro, venham a comprovar uma simbiose irreversível, conteudística e de comunicação poética, existente em toda a sua obra, e assinalada, de começo, por uma espécie de inversão de método, em confronto com o que aconteceria depois.
Nem de longe é o ar da chamada, nos compêndios de literatura, poesia científica,
"o sopro da ciência a intumescer-lhe o peito", como queria o pernambucano Martins Júnior, em fins do século XIX. É a evidência de que o poeta e o cientista social, sem que um ou outro se diminua ou descaracterize, já se unem, nessas primeiras manifestações de Gilberto Freyre." MAURO MOTA
MOÇA DO SOBRADO
Era dentro de casa a vida
da moça de sobrado,
entretendo-se com a fala dos papagaios,
dizendo Meu Bem,
Meu amor, laia, Sinhá, Dondon,
(na falta de uma voz grossa de homem)
entretendo-se com as carícias de macaco
e sagüim
(na ausência de uns agrados
de rapaz)
as lojas mandavam ao sobrado
chapéus de abrir e de fechar,
botininhas de duraque,
fitas e pentes de marfim,
filós, cetins.
Chamavam-se os mascates
com as varas de côvado
verdadeiras matracas
batendo pelas ruas.
Tanto pano bonito, tanto frasco de cheiro
pulavam dos baús de flandres cor-de-rosa
para a esteira ou para cima do sofá
que a moça de cabeção e saia de baixo
de cabelo solto, e rodeada
de negras, sentia-se feliz como uma menina
doente entre brinquedos espalhados pela cama.
OLHA PARA MIM, IRENE
Nas areias das praias de Olinda,
em 1900, muito verso
a ponta de bengala, muita súplica
"Amo-te, não me desprezes
ingrata."
E "olha para mim, Irene".
Tudo para Irene ler.
Irene passava toda
de cor-de-rosa
e de sapato
de salto
alto.
Às vezes de cabelo solto.
Na frente, ia o bacharel
o fraque preto voando ao vento.
POEMAS E CORES DO SERTÃO E DO AGRESTE
Contrastes de verticalidade gótica e de volúpias rasteiras,
rudezas do alto sertão e do agreste,
maciços de catingueiras
salpicadas
nos tempos de chuva de vermelhos
que são ao sol como pintas de sangue fresco,
e de amarelos vivos,
de roxos litúrgicos.
No verão chupadas pelo sol de todo esse sangue e de toda
[essa cor,
quase reduzidas
aos ossos dos cardos.
Paisagem animada de tantos verdes
tantos vermelhos, tantos roxos, tantos amarelos
em tufos, cachos, corolas e folhas
como os cachos rubros em que esplende a ibirapitanga e
[arde o mandacaru,
como as formas verdadeiramente heráldicas em que se
[ouriçam os quipás,
como as folhas em que se abrem os mamoeiros
e as manchas violáceas das coroas-de-frade.
HISTÓRIA SOCIAL:
MERCADOS DE ESCRAVOS
Entre negros esverdeados
pelas doenças, se exibiam
os corpos de bela plástica
dos animais cujos dentes
de tão alvos pareciam
de dentadura postiça.
Negras lustrosas e moças,
um femeaço de boas
formas, lotes de melecas
passivamente deixando
se apalpar por compradores,
ante as exigências, moles,
saltando, mostrando a língua,
estendendo o pulso como
bonecos desses que guincham.
Havia ainda os moleques
franzinos. Nada valiam
porque se davam de quebra
aos compradores de "lotes".
JANGADA TRISTE
Ao longe, mui longe, no horizonte,
além, muito além daquele monte,
como ave que voa desdenhada,
flutua tristemente uma jangada.
Nos zangados soluços do oceano,
quase desaparece o canto humano
de quem no mar e céu inda confia
porque em terra tudo lhe é melancolia.
Isso de terra firme e mar traiçoeiro
nem sempre é certo para o jangadeiro
mais preso ao fiel sal que à incerta areia.
Mistura ao grande azul as suas mágoas
e encontra no vaivém das verdes águas
consolo às negras dores cá da terra.
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EN FRANÇAIS
Trad. Vicente do Rego Monteiro
LA PETITE FILLE ET LA MAISON Poème de Gilberto Freyre
A MENINA E A CASA
Poema de Gilberto Freyre
Minha Sônia
Minha Sônia
Minha Soninha Maria
Nesta casa
Neste mato
Quero ver Sônia crescer.
A casa é cheia de livro
O mato é chio de bicho
Os livros contam histórias
Os bichos falam também
Mesmo as mesas, mesmo as plantas
Os retratos dos vovós
As panelas da cozinha
Mangueiras e coisas velhas
Têm boca falam também
Dizem segredos bonitos
Que os meninos
Que os poetas
Ouvem ninguém sabe como.
Quero ver Sônia Maria
Conversando com as galinhas
Com o gato
Com os passarinhos
Com a cadeira de balanço
Com o rio que passa perto
Preguiçoso dando voltas
Sem pressa de ir pro mar
Com as estrelas com as palmeiras
Com as cigarras dos bambus
Com os pingos d´água da chuva
E mesmo com os cururus
Com os livros cheios de histórias
Com os almanaques
Com os quadros
E com a melhor das mamães.
Da obra “Talves poesia”. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1962.
Poema de Gilberto Freyre traduzido ao francês e ilustrado por
Vicente do Rego Montiero,
EDSON NERY DA FONSECA FALA SOBRE O POETA GILBERTO FREYRE
Entrevista concedida a ANTONIO MIRANDA, pelo crítico e bibliotecário EDSON NERY DA FONSECA em sua casa à Rua de São Bento, em Olinda, Pernambuco (16/11/2010).
Videomaker: Nildo Barbosa Moreira para o Portal de Poesia Iberoamericana
Página publicada em novembro de 2007. Página ampliada e republicada em julho e em dezembro de 2010.