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GERALDO FALCÃO

 

 (Carpina, Pernambuco, 1931-    )   poeta e contista.


Livros de poesia: Signos Errantes e O Viajante Anônimo (Ateliê, 1997)

 

 

 

FALCÃO, Geraldo.  O Viajante Anônimo.   São Caetando do Sul, SP: Ateliê Editorial, 1997.   83 p.  12x18 cm.  ISBN 85-85851-31-7  

 

 

“Um conhecimento admirável da língua. Mãos seguras. Sentimento flutuante. Aliterações. Quadros de kierkegaardiano desespero. O monge e o mundo. A redenção e a morte. Há um sopro místico belíssimo que se insinua a cada verso e que constitui a engrenagem de sua máquina poética.  Marco Lucchesi

 

 

ATORMENTADO

 

À noite descerei desfeito em chuva,

em ouro evaporado em meio às chamas,

vou calmo, indiferente à tempestade

que em negros remoinhos se levanta.

Inventarei portais em minha busca,

penetrarei o chão, duro metal,

levo comigo lagos de ternura

que inundarão teu ventre intemporal.

 

Na cidade em que as torres como braços

precipitam-se em busca das estrelas

sob o chão em clarões eu me desfaço

nos clarões de Danae em brasas presa.

 

nas entranhas da terra faz-se aurora

em ouro do teu sexo fecundado,

em ouro eu permaneço, vai embora

um deus por ser divino atormentado.

 

 

MEMÓRIA DA SOMBRA

 

Há um mistério aflorando a intimidade

distante da visão, longe do tato:

transcende o tempo e vence a eternidade,

e segue a caminhar sem rumo exato.

A pele, o chão, a superfície deve

ao grão, ao corpo, a estrela, à sua chama:

Brilho fugaz da vida, acende breve,

se oculta imerso em meio a negra trama.

 

No centro onde o luzeiro instala a corte,

a imóvel noite está encarcerada,

aguarda a queda, a provisória morte

da inteira multidão incendiada.

 

Vêm da noite, dos pontos cardeais,

sacerdote e guerreiro, exibem cruzes

nos punhos das espadas, dos punhais

onde cravadas tremem débeis luzes.

 

Cada corpo, cada astro, cada estrela,

partícula, pedaço ou hemisfério

realça a sua sombra à luz de vela

dissimulando assim o seu mistério.

 

 

A IMÓVEL JORNADA

 

Os rastros que deixei

no chão petrificados

agora que tornei

estão em mim gravados.

Parti, por que não sei

se tudo ao meu redor

comigo era levado:

os sonhos, a paisagem,

o corpo atormentado,

esquinas dos encontros

por gaze separados,

as chamas sobre os dedos,

o peito apunhalado.

No círculo da estrada

eu sigo e estou parado,

não sei a quem procuro

(serei o procurado?).

 

 

ÁLBUM DE RETRATOS

 

Cada forma é circundada
         por paredes, por muralhas
         além dos olhos, espelhos.
         Em peles, plumas e pelos
         mantêm-se a forma velada.

 

O fogo ardendo em silêncio
penetra os olhos, a boca,
encurva os ossos, a sombra.
Chamas ardendo invertidas
e a cada forma transforma
em fantasma de poeira
que habita úteis túneis de ventos.

A tarde acende fogueiras
nas ruas, casas e campos,
no céu o sol se consome
e eu vejo em meu assoalho
estradas por onde andei
uns restos meus calcinados:
são cinzas que ali deixei.

 

 

BARCO SEM MAR E SEM PORTO

Hastes de vidro nos caminhos
por onde descem as serpentes
cerrando anéis de seda e linho
peçonha oculta entre seus dentes.

Aço de espada, ponta, espinho,
arco no azul, lua crescente:
raios de luz em desalinho,
seguindo vou rumo ao poente.

Volta, revolta, céu rasgado,
a estrela, o brilho decepado
cai no lugar onde estou.

E continuo, agora cego,
guiando a nave em que navego
na via que a morte me traçou.

 

 

CONTEMPLAÇÃO DE OLINDA

Nas ruas, nas colinas escavadas
há pedras, há mariscos, há sereias
e casas assentadas nas calçadas
velando o verso escrito sobre a areia.

No sono aceso à luz de uma candeia
eu vejo o mar descendo por escadas
arrastando entre espumas e cadeias
pedaços da cidade espedaçada.

Retenho o tempo em brasa em minhas mãos,
corrente que me atrela à procissão
de mortos, mesmo vivo estando ainda.

A luz guarda lembranças nas colinas,
canções na lua envolta entre as cortinas
do mar que em desespero afoga Olinda.

 

 

Extraído de

 

POESIA SEMPRE. Ano 15.  No. 29. 2008.  Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional,  2008.     Editor: Marco Lucchesi. ISSN 0104-0626.  Ex. bibl. Antonio Miranda

 

         Da brevidade do verbo

         Semilúcido verbo itinerante
         desde à garganta às conchas tortuosas
         vibra tão breve, verbera um instante
         e perde-se no ar vaga vagafosa.

         Inúteis, repetidas, as palavras
         zumbem no espaço, enodoando o dia,
         úmidas bocas que  som escalavra,
         ecos sem nexo em vastidão vazia.

         E nas ruas desfilam multidões
         de autômatos: os olhos reluzentes
         por miragens, fantasmas e ilusões
         e as frontes coroadas por serpentes.

         O que diz, afinal, o marulhar
         das desconexas vozes que persigo
         se eu mesmo, frente ao espelho, a falar
         nada entendo do que a mim próprio digo?

 

         O homem submerso

         A cabeça entalhada nesta pedra
        
levitandonum grito sofreado,

         já cruzou oceanos, outras terras
         sobre ombros de demônios se beatos.

         Esta velha bandeira desbotada
         a um canto da parede carcomida

         drapejou presa a mãos ensanguentadas,
         e entre ossos de outras mão jaz esquecida.

         As palavras em páginas picadas
         revoando na luz do amanhecer,

         ressoaram em versos e baladas,
         vão caladas na cinza esmaecer.

         Esse corpo sem silêncio entranhado,
         os olhar de espantos a se abeirar do abismo,

         desfaz-se em sombra entre clarões opacos
         de águas em fúria em convulsões no rio.

        
         Moto perpétuo

         Decífra-me o mistério das palavras
         que vagam sobre mares de silêncios;

         entoa os nos das sílabas exatas
         imóveis sob língua de tempo.

         Secreta é a linguagem desses gestos
         da sombra que a manhã vem desvelar,

         nos acenos nervosos dos seus dedos
         não sei o que me querem revelar.

         A sombra escala abismos tão escuros
         suspensa pelas luzes apagadas,

         acende por degraus os altos muros,
         no topo do sem-fim desfaz-se em nada.
       
 

 

 

 

 

Página publicada em fevereiro de 2009; ampliada em julho de 2018.

 

 


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