PEQUENA ODE DOMÉSTICA
Calor do pão na manhã,
crescendo manso e dormente.
No soalho se desmancha
doce luz inconsistente,
com suas facas de mel
cortando o silêncio quente.
Os ombros dela na cama,
como narcisos cansados
num florescer transparente.
(De Os Instrumentos do Tempo)
POEMA DAS HORAS
De teu corpo não se sabe
se era noite ou se era dia
— ao redor plantaram muros
de surda melancolia.
Das noites de escura ponta,
habituais e vazias,
que no meu olhar constroem
o desencontro dos dias,
guardarei o compromisso
das fugas inevitáveis,
o verde canto das horas
irregulares e frias.
E esse resto de surpresa,
humilde, quase escondido?
E essa frágil certeza,
que em teus olhos divididos
cultivava o voo intenso
de sobressalto e tristeza?
— A minha sombra está presa
à sombra de teu silêncio.
Quer sejas a flor desfeita
ao improviso da bruma,
quer teu silêncio se una
em forma fria e perfeita,
quer na louça matinal,
por sobre a relva tranquila,
ou no alimento noturno
das janelas em vigília,
serei sempre a hora impune,
essa que o tempo não vê,
que nasce no turvo espasmo
da distância que nos une.
(De Os Instrumentos do Tempo)
SONETO DE PAUL GAUGUIN
Um velho anjo, bêbado e cansado,
com as roupas manchadas de tristeza,
tenta esquecer a sua imagem presa
à condição de infinitivo e alado.
Restos de sol repousam sobre a mesa.
Uma música imóvel no teclado
esconde ao tempo, que ficou parado,
sua medrosa fonte de surpresa.
Porém, Gauguin, tua canção morena
é um crepúsculo vivo — o céu, a dança,
sargaço, hibisco azul, sombra, menina
de coxas nuas na paisagem plena —
sabor desesperado de lembrança,
onde o mar principia e o mar termina.
(De Os Instrumentos do Tempo)
BACK, Sylvio. Cinquenta anos. Díário do Paraná. Edição fac-similar. Capa : Guilherme Mansur. Reprodução fotográfica: Cadi Busatto. Coordenação gráfica: Rita de Cássia Solieri Brandt. Projeto gráfico: Adriana Salmazo Zavadniak. Curitiba, Paraná: Itaipu Binacional, 2011. S. p. Inclui 7 folhas dobradas 94 x 1,26 cm., com imagens de páginas do suplemento literários dos anos 1959 – 1960, acomodadas numa caixa de papelão 35x 48 cm. Ex. bibl. Antonio Miranda.
3 poemas
Epitáfio para Charlie Chaplin
No sumo desta pedra
repousará a sêde
minha última flor.
Epitáfio para Manuel Bandeira
Aqui já o poeta que muitas vezes
morreu jovem.
Sua coleção de objetos humildes,
de ternuras imperceptíveis,
espalhou-se por todos os cômodos
do imenso sobrado,
onde as visitas sorriam comovidas.
Aventura em Silêncio
Canto para aquecer teu sono
e vejo apodrecer a música do tempo
e por trás de seu branco desespero
outro mais puro e muito mais atento.
Inelutavelmente me acredito lavrando
a superfície do cinzento
e cruel como um anjo, desvestido
de tudo o que o silêncio não entende.
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Poemas publicados em 22 de novembro de 1959
Página ampliada em fevereiro de 2021