FÉLIX DE ATHAYDE
Félix Augusto de Athayde (1932-1995) foi jornalista, ensaísta e poeta brasileiro.
Trabalhou como jornalista e articulista em diversos Jornais: Jornal do Commércio (Recife), Última Hora, Tribuna da Imprensa, Correio da Manhã, O País, O Estado de São Paulo, O Pasquim, O Globo, Jornal do Brasil. Participou do CPC - Centro Popular de Cultura da UNE. Colaborou nas publicações Revista Civilização Brasileira e Tempo Brasileiro, entre outras. Veja mais em: http://pt.wikipedia.org/wiki/F%C3%A9lix_de_Athayde
VIOLÃO DE RUA (III) - Poemas de Affonso Romano de Santa´Anna, Audálio Alves, Carlos Penna Filho, Cassiano Ricardo, Felix de Athayde, Fernando Mendes Vianna, Fritz Teixeira de Salles, Geir Campos, Homero Homem, Jacinta Passos, Moacyr Felix, Olimpio Bonald Neto, Oscar Niemeyer, Paulo Mendes Campos, Ruy Guilherme Barata, Solano Trindade, Wania Filizola. Rio de Janeiro: Editôra Civilização Brasileira, 1963. 145 p. (Cadernos do Povo Braslleiro - Extra) 10,5x17 cm. Desenho da capa: Eugênio Hirsch. Col. A.M.
ARENGA
félix fúria foice e martelo
cidadão como um cão
danado da vida
porque a vida
está custando
os olhos da cara
porque a vida está cara
como uma joia
porque a vida está
pela hora da morte
repito (eu: vocês)
félix fúria foice e martelo
farto até os bagos
de barriga vazia
promessa não enche barriga
félix feixe de vida
farto da fúria do lucro
feito foice
martela
teu ouvido
chegou a hora
chegou a hora
agora
II
a hora é de grossura
hora porra
basta
desta bosta
desta casta
desta crosta
é dado o momento
de jogar os dados
nada
é dado
tudo
é conquistado
III
caco de homem
gasto de homem
você é fhomem
asco de homem
oco de homem
você é fhomem
homem gasto
traste de homem
você é fhomem
resto de homem
sem rastro de homem
você é fhomem
traste de homem
sem lastro da homem
você é fhomem
homem (?)
sem astro
você dá duro
a vida não é mole
você faz
alguém aproveita
o chão
o muro
a casa
a prole
eles só no mole
você faz e eles engolem.
IV
félix fúria foice e martelo
denuncia
segredos
(estou no meio do povo)
repudia
escarrando no chão
(passando o pé em cima do cuspe)
o mundo ocidental cristão
isto feito (bem feito)
abre o peito e a boca
e denuncia
esse (i) mundo burguês é uma balela
no Brasil ainda existe febre amarela
esse (i) mundo ocidental é abjeto
no Brasil tem 35 milhões de analfabetos
esse (i) mundo democrático é mentiroso
o Brasil tem 15 milhões de tuberculosos
esse (i) mundo cristão é uma merda
ainda acredita em carlos lacerda
V
(atenção com as palavras?
merda merda merda merda
tensão nas palavras:
que vá da merda à bala
quem consente cala
quem não consente
mostra os dentes)
VI
basta da palavras parolas
palavras
não enchem
barriga
feijão na caçarola
sim
a fome
morde
como um dente
na boca
do estômago
No Brasil a comida é pouca
o povo não tem roupa
e a maioria da minoria dos deputados
que protesta
não resiste a um (US$) cala a boca
VII
Hungry, no Brasil fome,
é um bom investimento
tanto que a Hungry of Brazil
já anuncia o aumento
do seu capital privado
visando ao incremento
do melhor negócio do
nosso desenvolvimento
a partir dos últimos anos
houve notável incremento
neste ramo industrial
atualmente isento
de imposto — medida
tomada no intento
que tem nosso governo
de não criar constrangimento
ao capital estrangeiro
que faça oferecimento
para contribuir com o
nosso desenvolvimento
e se a fábrica for
no Nordeste tem financiamento
a longo prazo
(num almoço oferecido
pelas classes produtoras — adutoras
para o' estrangeiro — ao presidente
da Hungry of World Inc., este teve
oportunidade de declarar, entre
aplausos, que a fome é um ótimo
negócio para quem come.)
VIII
Por isso
félix fúria foice e martelo
contra isso
e considerando
a) que quase 50 por cento da população no Brasil
é constituída de analfabetos
b) que o Recife tem 800 mil habitantes e possui
apenas 74 •mil edificações de alvenaria, enquanto
o número de mocambos se eleva a 110 mil, dos quais
26 mil são cobertos de palha (informação tirada
do discurso de posse de Miguel Arraes)
c) que os lucros das empresas estrangeiras alcançam
500 por cento ao ano, conforme disse Vargas em
sua carta-testamento
d) que a inflação desvalorizou totalmente o dinheiro
do pobre e o combate à inflação aumentou o preço
da comida do pobre sem melhorar o valor do dinheiro
e) que o Brasil não necessita de capital
estrangeiro para se desenvolver porque se estatizar
suas riquezas pode se desenvolver por sua conta e
risco, etc. etc.
por isso
félix fúria foice e martelo
propõe
(porque o povo põe
e só os ricos dispõem)
que operário estudante e camponês
se unam de uma vez
por todas e para tudo
e levantem o povo' brasileiro
contra o capital estrangeiro
contra o capital estrangeiro
contra o capital estrangeiro
XI
e não dê ouvido
aos que dizem que a democracia
está em perigo
pergunte a eles:
sou eu que tem conta secreta nos bancos suíços?
sou eu que faz contrabando de café?
por acaso, eu controlo os meios de produção?
responda a eles:
a democracia nunca subiu os morros para descer até mim
a democracia nunca foi ao campo pegar na enxada comigo
a democracia nunca fez serão numa fábrica comigo
diga a eles:
a democracia é problema de vocês
meu problema é encher a barriga
pergunte a eles:
como posso pensar em democracia
com a barriga vazia?
não me façam apelos
— arranquem os cabelos
vocês vivem de lucro
— eu de salário
vocês vivem no luxo
— eu no crediário
félix fúria foice e martelo
lembra a você, operário:
esta é a hora
dos grandes ideais
a hora da salvação
portanto operário
cuidado com o teu tostão
(eles são capazes de tudo)
esta é a hora H
a hora de salvar
as liberdades do homem
(à custa da tua fome)
portanto operário
cuidado com a polícia
(nesta hora todo cuidado é pouco:
cuidado até com os poetas e com os economistas)
Foto: https://br.images.search.yahoo.com/
FELIX DE ATHAYDE - ALOÍSIO MAGALHÃES interlocução FELIX DE ATHAYDE. Desenhos de Solange Magalhães. 1984. 22 x 16 cm – 400 exs.
Ex. bibl. Antonio Miranda, doação do livreiro José Jorge Leite de Brito.
Aloísio Magalhães (1927-1982) foi um importante artista plástico, designer e ativista cultural brasileiro. Foi uma das mais importantes figuras do design gráfico do país.
Fragmentos:
I
Nada me impele
de sofrer para fora
a dor que sinto agora
— a dor de vida
que a própria medida
da dor não mede
— toda a ânsia de vida
contra a parede
— voz de punho de rede
esgarçada no gancho de fero
— este berro de barro-felix:
quem vem beber minha sede?
II
Não sei
o tamanho
da tua eternidade.
Tudo morre
e não morre todo.
Antes que o vento
apague
a pedra
sobre a terra,
eu te lembro.
(Desvayrada é esta língua portuguesa,
que, um dia, será substituída
por gestos ou por grunhidos
e os poemas nela escritos
nunca mais serão lidos,
nunca mais serão lidos).
III
Falo porque tenho língua
(muito embora portuguesa).
Conto porque sei de cento,
portanto, tenho certeza.
Canto e conto Aloísio
e sua modesta grandeza.
Ele, o de mil artifícios,
conheceu mundo e sertão.
Viu Veneza e viu Triunfo;
cara a cara, a solidão
(que trazia ao pé de si,
numa coleira de cão).
Aloísio Magalhães
tinha tino e tinha dentes;
tinha olhos que entreviam
o homem desde a semente;
e por ser sempre sendo,
nunca vi ser mais vivente.
Aloísio era infernal,
tinha pauta com o Cão.
Dormindo, fechava um olho,
abria outro com a mão.
Sua cabeça voava,
os pés, fincava no chão.
Tão Trancoso que só ele,
só vendo do Arco da Velha.
Às vezes, dava a impressão
de ter menos uma telha.
Mas tinha o mundo, o mundéu,
entre calva e sobrancelha.
Aloísio foi cenógrafo,
bacharel e professor.
Foi gravador e tipógrafo,
fez o Gráfico Amador.
Fez dinheiro*1, foi designer
e excelente pintor.
Cabra danado da peste,
pôde dizer: “Tive sorte.”
Viveu a vida todinha,
sendo frágil, como um forte,
E só perdeu uma briga
(de tocaia): contra a morte.
(...)
*1 — Aloísio Magalhães fez as imagens de nossa cédula:
Página publicada em dezembro de 2013 |