CARLOS CAVALCANTI
Carlos Severiano Cavalcanti nasceu na Fazenda Monte, Município de Campina Grande, Paraíba. Professor de Comunicação Social, vive no Recife, Pernambuco.
De
SERTANIDADE
Recife: Edição do Autor, 2004
189 p. ISBN85-98896-01-2
REVELEI O MEU FILME PRETO-E-BRANCO,
O RETRATO EXIBIU SERTANIDADE
No Nordeste, saí a cavalgar,
percorri o sobejo das restingas,
contornei as arestas das caatingas
sob o sol, procurei fotografar
a paisagem sem vida do lugar,
na intenção de mostrar a fealdade
do sertão quando traz a soledade
e borrifa de suor o meu potranco.
Revelei o meu filme preto-e-branco,
o retrato exibiu sertanidade.
Xiquexique sem flor junto a facheiros,
galhos secos torcidos nos arbustos,
vegetais tortuosos e combustos
espetando as encostas dos outeiros.
Carrascais entorroam tabuleiros
das coroas furentas, as de-frade
que vicejam naquela imensidade
quando o sol cobre a rocha em cada flanco.
Revelei o meu filme preto-e-branco,
o retrato exibiu sertanidade.
Legiões de famintos retirantes
fugitivos do fogo da coivara,
passageiros de muitos paus-de-arara,
buscam vidas em terras mais distantes.
Os que ficam são trôpegos errantes,
filhos órfãos da mãe calamidade,
empurrados à marginalidade
na vivência cruel desse atravanco.
Revelei o meu filme preto-e-branco,
o retrato exibiu sertanidade.
Já cansado de ver triste paisagem,
desisti de esporar o meu cavalo,
preferi buscar água pra lavá-lo,
procurando abrandar nossa viagem.
Entretanto, faltou-nos a coragem,
o cansaço tirou-me a agilidade,
o potranco a mostrar debilidade,
percebi que o cavalo estava manco.
Revelei o meu filme preto-e-branco,
o retrato exibiu sertanidade.
Meu cavalo cansou. Faltou ração.
Acabaram-se os filmes que comprei,
todos eles eu mesmo revelei,
registrei a crueza do sertão.
No meu álbum deixei a coleção
tradutora da dor e da orfandade,
com perfis exibindo obesidade,
nessa vida de rude solavanco.
Revelei o meu filme preto-e-branco,
o retrato exibiu sertanidade.
E naquele ambiente de mormaço,
encerrei na metade o meu roteiro,
procurei descansar num juazeiro,
coloquei a cabeça sobre o braço,
relaxei e dormi, pois o cansaço
reduziu-me o vigor pela metade.
Despertei temeroso da cidade
e sentei-me a pensar, sobre um barranco.
Revelei o meu filme preto-e-branco,
o retrato exibiu sertanidade.
Recife, 10 de abril de 2002
A SAGA DO VELHO CHICO
Velho Chico no teu leito,
com tantas pedras e curvas,
desparrama o liquefeito
poema das águas turvas.
O transbordar no percurso,
das artérias desse curso,
deslizando mundo afora,
desde Minas, Pirapora,
a Paulo Afonso e Penedo,
crepita sobre o rochedo
ao passar em Petrolina.
Velho Chico a tua sina
de trazer tanta energia,
nos inspira a poesia,
nos convence da grandeza
na geração de riqueza,
na força da luz elétrica.
Clareaste a face tétrica
e triste da escuridão.
Iluminaste o sertão,
todo o agreste e o litoral.
Na força descomunal,
no furor das invernagens<
o volume das barragens
movimentando turbinas,
multiplicando neblinas
ao debater-se nas rochas.
O sol reflete nas tochas
do lodo em todo o remanso
e repousa nas represas.
O rio busca descanso
na concha das águas presas.
Ao sair de Itaparica,
a pujança multiplica
na reserva de Xingó.
Do lago de Moxotó
às famosas corredeiras,
cantarolam cachoeiras,
Paulo Afonso, Sobradinho.
Prosseguindo no caminho,
espremido nas montanhas,
ultrapassando Piranhas,
já quase cansado e nu,
surge Piacabuçu
escutando a tua voz
ressoante, junto à foz,
por entre bancos de areia.
A água doce serpeia
num poema fluvial
saudando o mar ali perto,
que chega de peito aberto
num forte abraço de sal.
Recife, 5 de janeiro de 2004
De
A GÊNESE DO TEMPO
Recife: Edição do Autor, 2008
306 pl. ISBN 85-98896-24-3
A VOZ DO MAR
(a Dirceu Ravelo e Marco Maciel)
Escuto a voz do mar. Ouço o rosnado
das ondas ao fazer tantos saudares
às vagas que provêm dos outros mares,
num linguajar de sal, codificado.
Os ventos trazem brumas seculares
veiculando um vendaval cansado.
Do Pólo Sul, o sopro congelado
transfere ao mar rumores regulares.
As correntes marinhas traçam rotas
sob as lépidas asas das gaivotas
no roteiro diário das jangadas.
Com fala monocórdia o mar não cala,
ouvindo o seu rosnar, lhe entendo a fala,
no silêncio abissal das madrugadas.
JUAZEIRO
(a Maria do Socorro Coutinho de Carvalho)
Recordo tanto, velho juazeiro,
em tua sombra, quando pequenino,
tu sempre foste terno companheiro,
junto a teu pés eu cria no destino.
E no verão passava o dia inteiro
no pastoreio, era um peregrino.
Tu tremulavas, rude e prazenteiro,
eu sonhava o meu sonho de menino...
Abraçado contigo certa vez
tive um desejo imenso que me fez
no teu tronco o meu nome transcrever.
E nunca mais nos vimos novamente.
Na barca da saudade, francamente,
singraria dilúvios pra te ver.
APELOS
(a Paulo Dantas e Gilberto de Hazaña de Godoy)
Pelos varais premidos da favela,
retalhos multicores da penúria
tremulam apontando para a incúria
da farta sociedade paralela.
Poderes insensíveis à lamúria
amargam os efeitos da sequela:
fechando porta e sem abrir janela
são vítimas também da imensa fúria.
Esse contraste traz desequilíbrio
na luta desigual entre o ludíbrio
e a dura realidade da carência.
E nos varais as roupas tremulando
são mãos desidratadas apelando
na busca de conter a vioência.
EU PLANTEI EM JANEIRO O MEU ROÇADO,
MAS A CHUVA FALTOU, FIQUEI SEM NADA
(a Myriam Brindeiro e Salete Cordeiro)
Fui ao silo e tirei toda a semente
que restava guardada há mais de um ano
e saí a plantar em solo plano
na esperança de inverno consistente.
O trovão ribombou e de repente
envolvi-me no som da trovoada.
O riacho rosnando na enxurrada,
o meu milho pouquinho semeado.
Eu plantei em janeiro o meu roçado,
mas a chuva faltou, fiquei sem nada.
Trinta dias depois da plantação
eu gostava de ver meu milharal
verdejante, brilhando, colossal,
alegrando meu frágil coração.
Fiz a limpa primeira na intenção
de arrancar todo o mato usando a enxada,
começava a limpar de madrugada
sem contudo sentir-me mais cansado.
Eu plantei em janeiro o meu roçado,
mas a chuva faltou, fiquei sem nada.
O pendão começou a tremular,
quando o sol assumiu a dianteira,
a trocar chão molhado por poeira,
a neblina deixou de borrifar,
a lavoura teimava em não murchar,
mas a haste do milho, já envergada
pendurava a boneca atrofiada
enquanto eu contemplava amargurado.
Eu plantei em janeiro o meu roçado,
mas a chuva faltou, fiquei sem nada.
Perdi tudo o que tinha de semente,
não deixei transformá-la no cuscuz,
carreguei cabisbaixo a minha cruz,
enfrentei a dureza do sol quente,
vejo agora o sofrer da minha gente
sem destino na terra desolada,
transeunte nas margens de uma estrada
indo à toa, sem rumo, em qualquer lado.
Eu plantei em janeiro o meu roçado,
mas a chuva faltou, fiquei sem nada.
Vejo a barra ao quebrar e fico atento,
para ver se a invernada inda retorna,
entretanto, a manhã já nasce morna,
o que traz para mim um desalento,
desespero ante a dor desse momento,
minha casa sem luz, vive apagada,
o sertão vendo a flora incinerada,
o seu povo sem rumo e flagelado.
Eu plantei em janeiro o meu roçado,
mas a chuva faltou, fiquei sem nada.
Já não ouço o cantar dos rouxinóis,
não escuto o arrulhar das juritis,
raramente ouço poucos bem-te-vis,
saltitantes nos galhos do cipós.
No horizonte tem mais pores de sóis
inundando de luz toda a chapada,
a paisagem cinérea iluminada
quando a lua esparrama o seu dourado.
Eu plantei em janeiro o meu roçado,
mas a chuva faltou, fiquei sem nada.
Página publicada em novembro de 2009
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