Fonte: http://www.fabiocampana.com.br/
WALMOR MARCELLINO
(Araranguá, 1930 — 2009) foi jornalista e trabalhou nos jornais Diário do Paraná, Ultima Hora e Gaveta do Povo. Publicou os livros de poesia As estações e os voos do homem. Malvas, fráguas e maçanilhas e as peças Os subterrâneos da cidade. Os acordos de Mr.John com Deus e Os fuzis de 1984.
101 POETAS PARANAENSES (V. 1 (1844-1959) antologia de escritas poéticas do século XIX ao XXI. Seleção de Admir Demarchi. Curitiba, PR: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. 404 p. 15X 23 cm. (Biblioteca Paraná) Ex. bibl. Antonio Miranda
PEQUENA ELEGIA
Os homens ganharam seu pão.
Podem comê-lo
como o sistema os come.
Podem amar em angústia,
com amor e tristeza
uma carga depositada
liberta seus ombros em nova marcha.
Podem gritar na noite
como animais acuados
sua indizível esperança.
Podem comer o fumo
banhar-se no álcool
engolir sua paçoca
extenuar-se na enxerga
povoar a fêmea de ruídos
e breves pensamentos.
DA QUALIFICAÇÃO DE NASCIMENTO
Compreendia, então, desde antes
que eu não tinha meu próprio
espaço; e era apenas destinado
a formar no grande rebanho
despossuído, animais falantes.
Era talvez uma outra classe
bem distinta da hierarquia,
de sem direitos de família
de sem haveres em franquia,
envolvida no próprio enlace.
No geral o nosso caminho
já há muito foi traçado,
quem já nasceu sozinho
embaixo fica trancado.
Se pelo meio se perdeu,
só sobe com avalista
que por ele se defendeu
na confirmação de conquista.
Outra parte desse meio
viverá sempre prensada,
procurando o seu esteio
sem encontrar mesmo nada.
A maioria ficará esmagada
por operar sem a ciência,
trabalha e será trabalhada
entregando a sua existência.
O Tribunal invisível age
como fiscal de interstício
para assegurar a passagem
só com atestado em ofício.
E de querer burlar essa lei
rebelando os nascidos servos
é que processado passei
cumprindo penas de acervo
para ser um dia um deles.
OS CERCOS E AS DEFESAS
Fecharam-me muito cedo
ainda antes de me situar
com as pessoas e o lugar.
Cercaram minhas emoções,
hostilizaram-me até o medo,
quebraram-me em muitas porções.
Torceram meu desespero,
minhas ânsias e meus apelos
e deixaram meu corpo inteiro.
Para sobreviver, entrementes,
cansei de chorar, à espera
de diálogos e entendimentos
para ser aceito como era.
Cresci escondendo o corpo
da pancada, da violência,
construindo, sutil nos zelos
a ternura e a insolência;
rebelde vivo, menino morto. [...]
A DESCIDA
nova lamentação de mineiro
Uma escada de madeira
alguns passos e uma parada,
o ar empestado de poeira
que pouco a pouco nos mata.
Sílica e enxofre no ar
que pesado se respira,
tem um filtro a saturar
o suor que temos dentro.
Entretanto, fazemos fila
querendo vaga na mina;
aquele que a fome ensina
não come o seu sustento.
A céu aberto não há comida,
embaixo da terra pouco há;
mas os que guardam em cima
cuidam da boca da mina.
Seja claro aqui acima,
ou lá embaixo no escuro,
o trabalho é que produz
mas quem é o dono da mina?
A céu aberto não há comida,
também não há embaixo da terra;
e os que guardam em cima
cuidam da boca da mina.
[...]
Vivemos o tempo de ira.
Momento de palavra presa
da insegura presteza
e o pão ácido à mesa.
Ainda assim cantaremos
pelo tempo da colheita,
com alimento na eira,
sob palavra aceita
e sobre nós nossa bandeira.
Afinal, eu me apresento
jogando força à minha voz,
mesmo gesto em descompasso,
não sei, não sou mas faço.
Eu de minha parte
canto.
Faço profissão de arte.
Protesto. Canto.
Primeiro um canto fraco,
mas canto de precisão,
chamado de reunião.
Mesmo inseguro
talhando algum perigo
canto o homem do futuro.
E quem quiser cante comigo.
Página publicada em setembro de 2015
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