SIMBOLISMO / POETAS SIMBOLISTAS
SILVEIRA NETO
(1872-1942)
Manuel Azevedo da Silveira Neto nasceu em Morretes, Paraná, em 4 de novembro de 1872 e, após 1879, morou em Curitiba. Iniciou e interrompeu o curso de humanidades, para estudar gravura e desenho. Cursou a Escola de Belas-Artes de Curitiba, sem realizar o sonho de chegar à Academia de Belas-Artes, do Rio. Ingressou, por concurso, na Fazenda Federal, em 1891, iniciando carreira de dignidade e zelo. Casouse em 1893 e viveu passagens dolorosas com a morte de cinco filhos. Integrou o grupo Cenáculo. Em 1901 publicou Luar de hinverno. Falecido E. Perneta, foi proclamado "príncipe dos poetas paranaenses". Faleceu no Rio de Janeiro em 19 de dezembro de 1942.
Para Tasso da Silveira (1967, p. 27/33), o poeta foi "uma espécie de exegeta das ruínas, da morte, do silêncio, como foi em toda a sua vida o homem dominado pela dor de viver." E sintetiza: ''A feição primavera! deu-nos Emiliano Perneta, com a sua poesia coruscante de sol e ébria do sentimento pagão da vida. O desértico recolhimento do inverno foi que sobretudo se condensou no canto de Silveira Neto, embora também nele a primavera por vezes irrompa triunfante".
Poemas extraídos da obra SIMBOLISMO / seleção e prefácio Lauro Junkes. Sâo Paulo: Global, 2006. 152 p. (Coleção roteiro da poesia brasileira0 ISBN 85-260-1147-2
Enviada gentilmente pelo amigo e editor Luis Alves Júnior.
ANTÍFONA
Noite de inverno e o céu ardente de astros,
Com a alma transfigurada na Tortura,
Olhava estrelas, eu, crendo-as, em nastros,
Almas cristalizadas pela Altura.
Frio da noite é o pólo em que o uivo escuto
Do urso branco do Tédio, em brumas densas;
É bar glaciário que nos vem do luto
Da avalanche de todas as descrenças.
A noite é como um coração enfermo;
Rito de almas de maldições cobertas.
Alma que perde a fé muda-se em ermo,
Ermo de tumbas pela vida abertas.
Esse "réquiem" da Cor pelo ar disperso
Como que encerra, num delírio infindo,
Todo o soluço extremo do Universo,
Num concerto de lágrimas subindo.
É cenário do Fim que atroz se eleva
Desde que ao Nada o coração se acoite;
Pois, como o dia cede o espaço à treva,
Fecha-se a Vida nos portais da noite.
Se vem a noite num luar acesa,
Lembra uma cruz coberta de boninas;
A luz da lua é triste, — que a tristeza
É o sagrado perfume das ruínas.
É uma prece o luar, prece perdida
Por noite afora, em lívida cadência,
Como cada sorriso em nossa vida
Planta a cruz da saudade na existência.
Era de estrelas um enorme alvearco
A cúpula celeste escura e goiva;
E a Via-Láctea se estendia em arco,
Branca e rendada como um véu de noiva.
Depois gelada abrira-se, e na extrema
Nevrose eu vi formarem-se, de tantos
Astros, as duas páginas de um poema
Em que eram cor de lágrimas os cantos.
Cantavam as estrelas. Coros almos
O espaço enchiam de um rumor contrito
E histérico, a fundir astros em salmos,
Parecia rezar todo o Infinito.
No êxtase que os páramos outorgam
Aos visionários, eu surpreso via
Que, céus afora, como a voz de um órgão,
A salmodia d'astros prosseguia.
Erma de risos e de majestades.
Porque as estrelas são os magnos portos
Onde ancorou com todas as saudades
A dor de tantos séculos já mortos.
Desde Valmiki e Homero — esses profetas —
As intangíveis amplidões cerúleas
Ouvem, sangrando, a queixa dos Poetas,
Como um cibório de canções e dúlias.
Ermas de tudo que não fosse a mágoa,
As estrelas formavam o Saltério
Num brilho aflito de olhos rasos de água ...
E pelo espanto entrei nesse mistério:
Eis que um Visionário do Supremo Ideal,
ansioso de Azul e de infinito,
(Da ânsia de Azul que teve o Anjo Maldito
Após o castigo extremo)
E fatigado do torvo mundo espalto,
Onde a alma se nos vai muito de rastros,
Pôs-se a evocar a Paz Eterna do Alto;
Falou-lhe então a música dos astros:
Luar de inverno e outros poemas (1901)
LITANIAS
O mesmo céu-que nós olhamos, olho:
Mundos gelados de saudade; admire-os
A alma que tenha, abrolho por abrolho,
Toda a loucura e todos os martírios.
Jorro de pranto com que os versos molho,
A Via-Láctea é um desfilar de círios.
Quanta tristeza para os céus desfolho
Na doida orquestração dos meus delírios! ...
E vou seguindo a ver, pela amargura,
Que as estrelas são lágrimas da Altura,
Ardendo como os círios dum altar.
Nada mais resta: e a vida, fatigada,
De no meu corpo ser tão desgraçada,
Foge-me toda para o teu olhar.
Ibidem
A LUA NOVA
A Nestor Victor
No silêncio da cor, — treva silente —
Abriu-se a noite mádida e sombria,
Logo que o Sol, rezando: Ave, Maria ...
Fechou no Ocaso as portas de oiro ardente.
A terra, a mata, o rio, a penedia.
Tudo se fora pela treva e, rente
Ao céu, ficou a lua nova algente,
Como um sonho esquecido pelo dia.
Ela assim foi: morreu; desde esse instante
Pálido e frio, como a lua nova,
Ficou-me entre as saudades seu semblante.
Mas, ouve: quanto mais doida cresce
A noite que me vem da sua cova, :
Mais branca e inda mais fria ela aparece.
Ibidem
CANÇÃO DAS LARANJEIRAS
Laranjas maduras, seios pendentes
pela ramada, apojados de luz,
Que é das orinhas-nevadas e débeis,
caçoulas de incenso que o aroma produz?
Se elas recendem o ar todo se infla
num esto de gozo, nas frondes do vai,
Como se andasse o Cântico dos cânticos
abrindo-se em beijos no laranjal.
São elas o sonho da árvore em festa
pensando no fruto, que é todo sabor;
Assim a grinalda que enfiaram, das noivas,
é a aurora do dia mais claro do amor.
Infância, candura da estréia longínqua,
luz tênue que flui das auras do céu.
Depois do primeiro amor, o remígio
do sonho mais puro a que a alma ascendeu.
De sonho, bebido em taças que lembram
aquela de lavas, que um dia o vulcão
moldara em Pompéia, num seio de virgem,
talvez em memória de algum coração.
Ibidem
Foto da lápide do poeta gentilmente enviada pelo Comendador Felipe Nicolau.
Página republicada em março de 2008. |