LUIGI RICCIARDI
Luigi Ricciardi nasceu em Londrina (PR), em 1982. É formado em Letras e tem mestrado em Literatura na Universidade Estadual de Maringá (UEM). Atua como professor de literatura e francês. É idealizador do projeto “Mutirão Artístico” e da revista literária Pluriversos. É autor de dois livros de contos, Anacronismo moderno (2011) e Notícias do submundo (2014). O seu romance Aquilo que não cabe, ainda inédito, esteve entre os finalistas do Prêmio SESC de Literatura 2013/2014. Vive em Maringá (PR).
101 POETAS PARANAENSES (V. 2 (1959-1993) antologia de escritas poéticas do século XIX ao XXI. Seleção de Ademir Demarchi. Curitiba, PR: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. 398 p. 15X 23 cm. (Biblioteca Paraná)
SAMBA DE AUSÊNCIAS
Só por hoje vou deixar você partir Sem escândalos
Hoje deixo você levar todas as minhas coisas
Aquela camiseta dos Beatles
Um dos livros do Kerouac
Meu caderno de poesias anotadas
Só por hoje ou eternamente
Sentarei sem peso naquela mesa
Sorvendo meu café cheirando à insanidade
A insanidade de partilhar a cama com você
Não conversaremos como de costume
E eu ficarei sereno ao ver você sair
Deixando suas chaves sobre a mesa
Hoje eu posso ficar inteiro
Sem nenhuma peça faltando
Leve aquele vestido vermelho com você
Aquele que você deixa sempre no sofá
Quando eu te chamo com os olhos
Antes do samba que sempre nos entoa
Só por hoje solto o vínculo de meu vício
Vá, sim, e leve meus fios de cabelo
Que se desprendem no teu pescoço
Já roxo de minha demência
Vá, pois o mundo é de mortes
E a fatalidade é o que nos rege
E o seu entendimento
E a maior das maturidades
Mas pretendi levar a vida a sorrir
Emaranhando ficção e realidade
Assim te envio sem selo
Desprende-te do cais do teu vício
Só por hoje, amanhã já não posso prever
Mas, antes de ires, roube-me um beijo
Como roubaste minha dignidade
Vá ao samba no domingo e escute as línguas
Perca um pouco da tua vida nas esquinas
Suba no morro, no desterro pontiagudo
E perguntes por mim
Talvez esteja mais presente nos relatos
Do que aqui, depois do gozo
Finja que é alguém que vai feliz e não se importa
Faça como eu nesse meu falso descaso
Tentando se redimir por não sermos capazes
De nos amarmos mais do que nossos egos
Viva a falsidade de um amor
Do qual todos temos direito
Nessa falsa ordem de perfeição
Volte se quiser algum dia
Dê três batidas na porta e entre
Sente no sofá e prepare uma bebida
Contando-me sobre bocas que te sugaram
E sobre as toras que te permearam
E te contarei os púbicos que beijei
E orelhas que abocanhei
Traga-me uma rosa para companhia
Assim terei com quem conversar na solidão
Na tagarelice de sua mudez imutável
Arraste alguns centímetros para o lado
A alça do teu sutiã e verás minha loucura
De te recusar poeticamente te aceitando
Trago-te os pomos, engula-me os músculos
Soletre-me sinestesicamente
Tocando penugens, púbis, morando-nos dentro
E na vulvecência juvenil orgasma-me perene
E não te vá embora antes de me deixar lembrança
Pois algo se leva de cada encontro
Deixa-me um pacote de cinismo
Colocá-lo-ei na dispensa
E dele me servirei cada vez que olhar tua foto
Herdarei o teu olhar cínico
Quando ler os versos que me escreveste
E me lembrarei desse peito vazio
Que se preenchia de minhas salivas
Que se enchia da volúpia de meu cetro
Antes da murchidão natural
E da incompreensão eterna entre fumaças de cigarro
E do olhar longínquo pelas janelas da mente
E do fitar no teto vazio de nós mesmos
Para hoje e sempre
Dê-mo-nos essa insensata lascívia
Dê-mo-nos a desfaçatez que nos une.
CARTA PARA QUEM QUISER LER
Agora fui normalizado Entrei nas regras
Comprarei um carro do qual eu não preciso
Trocarei de modelo e marca a cada dois ou três anos
Farei horas extras pra acumular um pouco mais de dinheiro
E dar entrada na casa que todo mundo sonha
Vou ver os amigos morrendo e um dia também morrerei
Mas antes farei algumas coisas
Típicas àquelas que todas as pessoas fazem
Porque simplesmente se deve fazer
Não, não farei isso, recusarei o que você me fez
Foi você que me normalizou.
Enquanto você não me aceitava
Enquanto você criticava esse meu jeito asséptico
Essa minha falta de interesse no mundo
Essa verruga que eu criei dentro de mim
Esse desalinho com o estabelecido
Essa desmentira que me desconstrói
Esse catarro que me grita pandemonicamente claro
Essa febre desmedida, sim
Enquanto eu era esse livro despaginado
Era você que me enfrentava,
E era você que me dizia que eu estava errado
E eu me afirmando no seu aborrecimento
Eu me era, porque no contrário era que eu me fazia
Você não devia ter me aceitado, ter me simplificado
Eu me fazia na diferença, no avesso, no vazio
No polo, na descrença, no negrume.
Agora sou claro pra você, agora você me entende
Você me estende a mão, você diz que compreende as dores
do outro
Você me joga um feixe de luz e me acorda de um sonho melhor
Você me traz ao comezinho.
Agora eu fico enjaulado, sou zoologizado.
Vá e me deixe de lado
Quero ver aquele absurdo que acontece na esquina
Sob um anúncio brilhante e cegueta.
Quero morder minha língua e sentir o sangue escorrendo pelo corpo.
Quero pegar minha bebida quente sob o balcão
Acordar com ressaca dois dias depois.
Eu quero o mundo pegando fogo, numa autodestruição
demoníaca.
Os buracos destruindo as calçadas
As fissuras engolindo a miséria da alma, triturando paredes
Porque infinitamente sou aquele berro inaudível
Que se avalancha sob os tetos desprotegidos
Recolhendo as histórias mais absurdas
Suprimindo as salas acarpetadas
Entenda, querida, nesse meu coração violáceo
Eu perdoei tudo e a todos
Mas não vou impedir a catástrofe
Seria uma forma de autoperdão, e isso eu não posso fazer
Eu sou um luto pronto
E é por isso que levo as minhas coisas
Pode ficar, eu já paguei o aluguel (...)
Página publicada em maio de 2016
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