BRÁULIO TAVARES
nasceu em Campina Grande - PB, em 1950, e mora no Rio de Janeiro desde 1982. Publicou "Balada do Andarilho RamÓn e outros textos" (Pirata, 1980), "Sai do meio que lá vem o filósofo" (Edição do autor, 1982), "O homem artificial" (Sette Letras, 1999) e "Os Martelos de Trupizupe" (Engenho e Arte, 2004). Publicou folhetos de cordel, prosa de ficção e volumes de ensaios. Tem uma coluna diária no Jomal da Paraiba cujos textos estão sendo preservados no seu blog Mundo Fantasmo
(http://mundofantasmo.blogspot.com).
"A poesia de Bráulio Tavares funda raízes numa mescla criativa de fontes em que dialogam a tradição do cancioneiro popular, nos ritmos despachados, líricos e melódicos do repente e do cordel, a pulsação desencontrada e irreverente da dicção contracultural e os arrepios formais da erudição e da vanguarda". Hildeberto Barbosa Filho, critico e poeta paraibano.
A coisa
Eu quero inventar uma coisa, uma coisa viva, uma coisa
que se desprenda de mim e se mova pelo resto do mundo
com pernas que ela terá de crescer de si própria;
e que seja ela uma máquina viva, uma máquina
capaz de decidir e de duvidar, capaz de se enganar e de mentir.
Uma coisa que não existe. Uma coisa pela primeira vez.
Uma máquina bastarda feita de dobradiças e enzimas
e metonímias e quarks e transistores e estames
e plasma e fotogramas e roupas e sopa primordial...
Quero apenas que seja uma coisa minha, uma coisa
que eu inventei numa madrugada enquanto vocês dormiam
e quando a vi recuei, e quando a soube pronta duvidei,
e vi a eletricidade do relâmpago abrindo seus olhos
e martelei seu joelho temendo-a, e mandando-a falar,
e gritei: "Levanta-te e anda!"- e a coisa era uma galáxia
tremeluzindo no centro da folha branca, me olhando
com meus olhos de homem, me sorrindo
com tantas bocas de mulher, me envolvendo
com sua sintaxe de coisa nova que força o mundo a mover-se,
fincando uma cunha no Real e se instalando naquela fenda,
como um setor a mais invadido um círculo já completo.
Eu quero que essa coisa existisse, assim como
eu quis que eu seja. Quero vê-la brotar desarrumando.
Coisa criada, cobra criante, serpente criança,
criatura sentiente, existinte, sente, pensante,
cercada pela linha brusca do seu até-aqui
Essa coisa me conhecerá e não me reconhecerá
como seu Criador. Essa coisa terá poder de me destruir,
e de me recompor, e me mandar pedir-lhe a bênção.
Então pedirei. Sairei pelo mundo. Com minhas próprias pernas.
Finalmente leve e livre, tendo parido algo maior do que eu mesmo,
e disposto a me abraçar ao mundo, como quem desce do ônibus
na rodoviária da cidade onde nasceu. Mas o mundo!
O que é esse mundo onde eu ando agora? Olha a cor das casas,
o rosto do povo, o som da fala, a manchete dos jornais, o cheiro
do vento... que mundo é esse para onde retornarei depois de livre?
Fico parado, o coração pulando, e só daqui a pouco perceberei,
com uma surpresa antiga — que aquilo não é mais meu mundo:
e o mundo da coisa, é o mundo da minha Coisa.
Extraído de ANTOLOGIA SONORA – Poesia Paraibana Contemporânea. João Pessoa: Edições O Sebo Cultural, 2009. Produção executiva de Heriberto Coelho de Almeida. Contendo 9 CD com gravações de poemas nas vozes dos autores, e 31 encartes em caixa de madeira. ISBN 978-278-995423
Página publicada em outubro de 2009, a partir do material cedido pelo Editor.
TAVARES, Braulio. O Homem artificial. Poemas. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999. 67 p ISBN 85-7388-059-7
“Sem dúvida, Braulio Tavares é um dos meus poetas favoritos!!!”
ANTONIO MIRANDA
Comecei aprendendo Drummond
traduzi os poemas de Ezra Pound
as canções de Bob Dylan, o underground,
a escrita automática de Breton;
Maiakóvski foi quem me deu o tom
João Cabral me ensinou o ponteado
com Rimbaud aprendi ser afinado
pra cantar o oceano com Neruda;
treme o sol, treme a terra, o vento muda
quando eu canto martelo agalopado.
NA HORA DO LOBO
Quando um homem consome a madrugada
rabiscando umas folhas de papel
e ele sabe que a vida é tonelada
oscilando na ponta de um cordel;
ele sabe que o fim de toda estrada
não desagua no inferno nem no céu,
e ele pensa na feira, na empregada,
água e luz, condomínio e aluguel;
quando um homem fatiga a voz cansada
com palavras da Torre de Babel
e ele entende que a coisa mais amada
se transmuda na coisa mais cruel;
quando a taça em que bebe está quebrada,
tanto vidro a boiar em tanto fel
e no peito uma dor desatinada
essa dor que é tão nítida e fiel;
quando um homem de boca tão calada
sente a mente girar num carrossel,
ele escreve através da madrugada
com cuidados de abelha que faz mel:
sua vida, talvez, foi destinada
a salvar estas folhas de papel.
TRAVESSIA
O lar
do passarinho
é
o ar
não
é
o ninho.
TAVARES, Braulio. Os Martelos de Trapizupe. Natal, RN: Engenho de Arte, 2004. 120 p. ilus. Os poemas, no estilo “Martelo Agalopado”, vêm de uma tradição de cantoria de “desafio”. Não foram improvisados, mas escritos pelo poeta, em versão “erudita” e muitos musicalizados. As ilustrações, como vinhetas de cada capítulo do livro, foram extraídas do livro The Old Egyptian Fortune´s Last Legacy, Londres, s.d., extraído de Chapbooks of the Eighteenth Century, de John Ashton (London: Skoob Books, s.d. A 1a edição é de 1882), e mais uma extraída da obra anônima A Medieval Home Companion – Housekeeping in the Fourteenth Century, do século XVIII. Exemplar autografado. Col. A.M.
INNER SPACE
(Espaço Interior)
É um rosto tombado, é um sorriso
que divisa a montanha além do cântico;
umas águas escuras; e é seu pânico
refluindo-as na beira do infinito.
Duas faixas de sombra e de granito
rodeavam-lhe a fronte, e ocultavam
o segredo do nome que ostentava
em sua testa. É um véu, era uma névoa
que nascia do chão, vinha da selva
de onde emergem os búfalos, e escarvam.
É uma face que toca o remoinho
de além-praias, gargalo dos abismos,
boca funda que sorve, mó dos sismos,
e essa face sorri ao torvelinho.
Vê-se inscrita nas águas, que são vinte,
que são mil, que são muitas, que são rios;
vê-se a si, vê-se a ver quem vê quem viu os
semi-espectros imersos nessas águas...
vem voltando, trazendo, redes, algas,
hipocampos, seus olhos, o Vazio.
É uma cara que volta-se aos espaços
onde a vida não vai; que o verbo alcança;
e aguça esta sede, e incita a ânsia
de saber os porões desses palácios.
E percorre os salões, e cruza os paços,
e perquire as alcovas e as ameias;
nada encontra: as aranhas medem teias
de infalível desenho sem desígnio;
e esse rosto, um deserto todo escrito
pelo impacto da luz de tanta estrela.
E essa mão sempre cheia de serpentes
que me invade a visão, e me oferece
na mudez de uma dádiva, uma espécie
de ameaça sustida, agouro pênsil?
Ah, meus olhos, reabram-se, reinventem
o vazio de antigos sonos cegos,
sem temer a vertigem desse pego
que parece chamar meu desespero;
mas não vejam a mão com seus capelos,
cascavéis e urutus vindos dos brejos.
E esta voz, que sustenta seus castelos
no mais vão dos precários equilíbrios?
E a minha? E o ar, sou eu que o vibro,
e ao calar-me, palácios desmantelo?
Essa voz insinua um evangelho
ou apenas renega os já sabidos?
Despedaça o silêncio e seus cem vidros
sem vidência, sem chaves e sem senhas?
Não faz nada, essa voz? Só toca o vento?
Toca outra razão? Outro sentido?
Mesmo após findo o corpo, fica o rastro?
Mesmo após o fracasso, fica um eco?
Na memória dos dias, rola o século,
e só fica o que vai no seu arrasto?
Ou o que resta? O que escrevo, e me deslastro,
é o que escapa, ou o que o tempo submerge?
Já que o ser é canção, quem o concebe?
Quem recebe seus grãos? Quem os replanta,
quem os colhe, e os recolhe? Quem o canta?
Em que plano o que é fluxo permanece?
GARATUJA. Campina Grande, PB: 1977- 1978. 15 x 21 cm. Ano I – No. 1 – setembro/1977. Capa: Luis de Farias Barroso. Ex. bibl. Antonio Miranda
O CASO DOS DEZ NEGRINHOS
(romance policial brasileiro)
Dez negrinhos numa cela
e um deles não mais se move.
Manhã cedinho eles contam,
e só tem nove.
Nove negrinhos fugiram
e um deles, o mais afoito,
lascou-se: os guardas pegaram.
Ficaram oito.
Oito negrinhos trabalham
de revólver e canivete.
Roupa cáqui vem chegando;
restam só sete.
Sete negrinhos seguiam
pela rua de vocês.
Um pai chamou a polícia.
Correram seis.
Seis negrinhos dão o balanço
bolsa, anel, relógio, brinco...
Houve um erro na partilha,
viraram cinco.
Cinco negrinhos de olho
à saída do teatro.
Um vacilou, deu bobeira,
sobraram quatro.
Quatro negrinhos trombando
todos quatro de uma vez;
um, o transeunte agarra,
mas não os três.
Três negrinhos batalhando
feijão, farinha e arroz.
Um deu-se mal — a comida
dava pra dois.
Dois negrinhos se embebedam
de brahma, cachaça ou rum.
Discussão; briga; navalha;
fica esse um.
Um negrinho vai-se embora
se mistura à multidão.
Por trás desse derradeiro
vem um milhão.
UM MUNDO
— Além do alcance do verso,
um mundo rola.
Quase o tocamos... tão perto,
e não se o toca.
Seu rosto é feito de ruas.
Passa, e desarquitetura
a nossa órbita.
— Como são fundos seus rastros,
fortes seus ventos!
Seus contornos tão exatos,
conquanto imensos...
Nós o sentimos passando
e nem sequer suspeitamos
que estamos dentro.
— O verso jamais o encaixa
nos seus arquivos
e nem lhe sequestra a carga
substantiva.
Nunca o algema a seus pactos
e o vê desdobrar-se, intato,
inatingido.
— Aquém desse mundo, o verso
se desmascara:
lavoura de estéreis seixos
e nula safra.
Ourivesaria efémera:
lapidar límpidas gemas
sabendo-as falsas.
Página ampliada e republicada em junho de 2019 |