MEU ROSTO
Sou tão sincero no que faço
que penso: Deus me segue,
sorrindo e abençoado no pecado.
Sou tão sincero no que penso,
que Deus me acompanha no passado,
— velho tributário do pecado.
Sou tão voraz por entre as coisas
que, não raro, com elas me confundo.
Daí que, fiel ao que elas são,
sei que Deus me abandona no que sou.
Como, então, não creditar
a Deus, Nosso Senhor,
a sorte de, a toda hora, ter desejos?
IDEOLOGIA
Escondida está em nosso Vale
a minha ideologia da paixão.
Se tudo tivesse dado certo, digo,
eu teria sido pai aos doze anos.
Não é, querida Laura? E tu,
uma certa mãezinha à mesma idade?
Surpresas, mais que mistérios, vindas
do Vale em que nasci e casto fui,
os sentidos me impondo seu império.
DISCURSO SINFÔNICO
A Oriano de Almeida, maestro
Amigo, nada tanto como a pausa
na rotação igual de cada sonho:
vem o som, a musical linguagem,
que nos estreita num espaço único.
Oh, sonata, mais uma vez nos unas,
sobre léguas, estâncias e saudades,
mozartianas vidências na lembrança
com teu discurso sinfônico, indizível.
A NAU
A Gilbran Medeiros, Artista
Triste do verso suspenso antes da metade
neste ônibus hesitante com o que leva.
Vamos detê-lo. É menos que
o utilitário avariado
que esbarra no caminho sem saber.
Ah! O trêmulo ser que sonha
como Pedro
ante a cúpula azul cravada
pelo sol:
o belo Paulo surgindo em meio a franjas
de terra e outeiros mágicos. Lá! Lá!
Que lembra ele? No corpo luminoso que o define?
Será o retrato de uma grande nau augusta,
onde ela acontece, tocada de pedros e de pedras,
monumental como um verso inteiro, pleno,
arcabouço sagrado, rumando a céu aberto.
OMBROS
Fria é a tarde.
E úmida a minha carne
ao cruzar a grama
e passar por teus ombros nus.
Vejo o horizonte e a lua
despontando
rumo ao vago firmamento.
No entanto, vence o teu olhar
sobre o silêncio cósmico
e profundo do mar escuro.
O meu próprio amor.
LEITE, Ascendino. À Flor da Terra: poesia flutuante. João Pessoa: Idéia, 2003. 119 p. 12X19 cm. sobrecapa. Iluminuras de Mercedes (Pepita) Cavalcanti. Ilustrações em papel Vegetal 85 gr. Miolo em papel Chamoix Fine Dunas – Ripasa 90 gr. Col. A.M. (EE)
Ofício
à doce amiga Salete
Vivo do que sobra
como resto mortal.
Não sofro nem gemo,
suporto: os pesos
reais do meu valor
sempre caindo
para baixo; uma nova
forma de, sem convulsão,
o pé voltado para estrada,
pronto: como morto,
no fim sereno da des...
dita vivida por viver.
Nudez
Vai-se a primeira peça libertada
neste desnude terno e necessário,
deixando à vista, alerta e ansioso,
o teu perfil augusto e elegante.
Vai-se a segunda, abaixo do pescoço,
de onde pendem teus rijos seios virginais
inda que acaso não o sejam
mas levam a esse ventre oblongo de sereia.
Ah, todo o recato agora te protege
comigo, que te cubro, e por sorte, te duplico.
Elegia -10
Vem. O campo está aberto e livre
pra nele, a flor florir.
Como, no teu corpo, minhas mãos tocando
e tímidos se espalhem
meus dedos por teus delicados
traços, amando.
É assim que, por entre soluços
e sufocados gritos de prazer,
nada nos falte
nem chegue à demasia.
Eis o que, por nós, urdido
e pelo calor de nossa carne,
aquecida e sôfrega, vem nascendo
o mais ambicionado
dos destinos em busca
da ventura, do amor e da razão.
dita vivida por viver.
LEITE, Ascendino. Poemas do fim comum. João Pessoa, PB: Idéia, 2000. 187 p. 12x19 cm. Ex. da Biblioteca Nacional de Brasília, doação de Aricy Curvello.
À FLOR DA TERRA
Você me faz sonhar, com as frutas
verdes
largando o caule augusto, sem ruído,
mostrando que se doam, gostosas,
compassivas.
Amor, puro amor, sonhado e deglutido
à flor da terra e nela consumido.
CANÇÃO AMARGA
Nem todo silêncio é inexplicável.
Antes, pode ser pensado
e dirigido,
sob inconcebíveis fundamentos,
a um indispensável massacre.
Porém, mais que um ato
dantesco
ele consuma em morte e
cinza
ilusórios amores renegados.
PINTO, Luiz. Coletânea de poetas paraibanos. Rio de Janeiro: Ed. Minerva, 1953. 155 p. 16.5 x 24 cm. Ex. bibl. Antonio Miranda
MEU AMOR FUGIU
O meu Amor embarcou numa jangada
e ganhou ligeiro,
com um desassombro de marinheiro
o mar encapelado da Ilusão...
E foi-se... Sumiu-se lá ao longe,
no ponto onde o mar toca no céu,
entre os dois infinitos...
Eu fiquei esperando, da praia mansa
da minha Saudade,
a volta do meu Amor
que saíra bem cedo,
sem que eu soubesse para onde. . .
Mas o meu Amor se perdeu no meio do mar
e não voltou mais!...
BRUNNA
Preciso saber. Preciso que me digam
De onde jorra esse encantado som.
O nome, como asa sobre dunas,
Brunna, num sopro, rufio de libelula.
Quanto mais me foge a face, ó Brunna,
E a bruma apaga em ti o mar perdido,
Ai Que enleio!... Teu nome acorda em mim
Mil séculos de romanas migrações.
Pegasse eu não só o véu secreto
Que te encobre o gênio ou desandasse
A' sombra de teus pés. Ouça-me o céu!
Bruna! Quem és? País, ilha ou estrela?
Fosse um apelo, Brunna, fosse apenas
Aceno que se perde. Ou mesmo exílio.
Olha: que mais querer em tantas dúvidas
Que a música que te marca cada passo?
Onde quer que estiveres, entre nuvem
Ou bruma, preciso que me digam.
Brunna, dá-me teus pés para o caminho
Do tempo que não morre no teu nome.
Página ampliada e republicada em março de 2003.
NR: Por intermediação de nosso amigo Aricy Curvello, o mestre Ascendino Leite fez doação de uma antologia com sua obra poética para a Biblioteca Nacional de Brasília. Ampliada e republicada em setembro de 2012. Ampliada em novembro de 2015. Ampliada em julho de 2019