VICENTE SALLES
Tem 24 livros publicados e cerca de 50 micro-edições, além de ensaios em obras coletivas.
Um homem de muitas facetas: antropólogo de formação acadêmica, folclorista, historiador da cultura, musicólogo e a mais antiga faceta, poeta! Marena Isdbski Salles
“Nasci numa vila no interior do Pará: Caripi, a vila. Um lugar elevado, bastante chuvoso no inverno. (...) Infância no interior do Estado, variando as paisagens, até os 14 anos. Aos treze anos vi uma esquisitice: um combóio de trem carregando os soldados que regressavam da guerra. Os soldados cantavam alegremente bonitas canções e diziam coisas tais que — “a cobra fumou”, etc. Achei a guerra um negócio bonito. O combóio foi-se embora, deixando os “heróis” do lugar. A cidadezinha ficou de novo tranqüila.
A primeira revelação pura da poesia veio através da música. Um violinista tuberculoso era nosso vizinho. E era o fascínio dos meus oito anos sem tardes fagueiras. Gostava de me pendurar na janela do insidioso artista, e ouvi-lo, enlevado. Sarazate era o idolo de José Maria — o violinista. Quando José Maria morreu, herdei o seu violino.
Taludo, minha família se mudou para Belém. Era a quadra dos estudos mais elevados: ginásio. Inaugurei a nova fase com uma bomba no Colégio Estadual. A época era difícil. Belém havia deixado de ser base aérea estrangeira; e percebi que se falava de guerra de um modo diferente do que eu imaginava antes. (...)
18 anos inadmissíveis. Conhecimento do mundo. Subversão total na poesia; evolução total na poesia; evolução nas idéias litero-sociais. (...) Às vezes, porém, achava que a vida era um engodo; considerava-me equívoco da natureza — e meditava diante das águas barrentas da Guajará. Reminiscência de Werther, lido na infância (quase diria tenra). Rio de Janeiro, 1955”
Poemas extraídos da segunda edição da obra (aparecida originalmente na revista “Letras Fluminenses”, Niterói, em 1955 e em versão completa em 1964).
SALLES, Vicente. Livro de Marena. Rio de Janeiro: Thesaurus Editora, 2008. 142 p. Capa: Beto Paixão e Victor Alegria. ISBN 978-85-7062-701-8 “ Vicente Salles “ Ex. bibl. Antonio Miranda
O MENINO MUDO
Belém, 14 fev. 1952
procurei a voz menino
que o rei dos grilos te arrebatou
naquele pingo dágua
que a noite toda pingou
debalde!
quando cheguei no bosque
muito cedo!
o sol não se levantou
quando cheguei na fonte
muito tarde!
o sol a fonte secou!
LUZ NA CALÇADA
Belém, 3 set. 1952
não há luz no teto do mundo
não há luz nos postes
não há luz no cérebro do homem
apenas na calçada
o jato da lanterna do guarda-noturna
LENDA AMAZÔNICA
Belém, 14 nov. 1953
o pescador jogou nágua o puçá
cheio de escamas e cheiro de peixe
quem escondeu a beleza do mundo
na praia do mar
na conchinha de nácar
puxada por dois cavalos marinhos?
o pescador jogou nágua o puçá
cheio de escamas e cheiro de peixe
rena remou
a montaria montou na onda
boliu nágua
o vento terral soprou forte
espalhando os seus cabelos
eras! esse arrepio
que silêncio!
no calor da noite este frio
nossa senhora!
a lua bubuia na água
espalhando estrelas sobre o rio
o pescador jogou nágua o puçá
CENAMENA
Belém, 13 mai 1954
o preto no branco
caximbando está
a água no barranco
cai cai sem parar
pingo dágua pinga
do teto furado
pinga que respinga
o preto calado
a chuva chovendo
telhado de renda
a cana moendo
babando a moenda
o preto no branco
caximbando está
deu um solavanco
parou de fumar
TEMA DE REDONDILHA MAIOR
Rio, 12 set. 1955
procurando conhecer-me
e interpretar pormenores
muitas vezes o contraste
foi equívoco e somente
do bonde a forma corria
no aço de trilhos e rodas
era flagrante da fuga
vontade de libertar-me
eu subia pelo estribo
na noite correndo enorme
parecia a sombra minha
não poder desintegrar-se
quanta idéia sem limite
quanta vida reprovada
meus olhos deterão sempre
no aço de trilhos e rodas!
XI CARTA
TODAS AS SOLUÇÕES E A FINALIDADE
Todas as perspectivas no momento
têm fundamento os velhos preconceitos
representando súmula e quociente
quando me arguo abandonado fico.
Provavelmente encontro transitório
tateando a única figura opaca
nebulosa sem véspera ou sinete
continuada no tempo irresoluto.
As vezes que te busco numa aurora
a face igual temperamento quedo
tens na distância a nitidez prevista.
E as pedras que recolho no trajeto
banhando os olhos e apoteose cuja
finalidade têm a gaze a forma.
XIV CARTA
QUANDO UNS OLHOS ME FITARAM SEM PROMESSA
Perdidos olhos confrontando e espaço
foram iguais no tráfego de fuga
na circunstância de querer ou quase
perder-se num encontro sem promessa.
No bonde. Em Ipanema. Vago esforço
me perguntando incógnitas prolixas
propus compreensão ilimitada
e inadmissível forma e paradigma.
Mas era vaga sombra e a noite apenas
habituou-se a circunscrever enigmas
e gestos que perderam seus motivos.
Nem impressão marcada mudamente
nem desejo de ser real presença
para constância e permanência em suma.
Página publicada em fevereiro de 2008.
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