amar fazer destruir
cães (viajores de um dia)
hilda hilst
tens escrito
foi o que disseste
mas desde então nada mais li
de ti nem vi teus quadros
na última exposição
não fui fiquei num bar
sozinho isso foi um erro
não ir a tua exposição
qual era mesmo o nome?
agrilhoados & vagantes
título tirado de um poeta
amigo teu
mas de resto tudo te pertencia ali
foi o que disseram
li nos jornais
já vai adiantado
quem ainda poderá saber?
nos jornais as palavras
não servem pra mais nada
muito menos pra falar de arte
[talvez de crimes gotejando
sangue sem parar]
leitores querem outra coisa
levantar um pouco o véu
& interrogar-se
não se curvar mais diante de fatos
não se confirmar aí
enquanto peço desculpas
fazer um poema pra isso
eu deveria ficar quieto
por certo nem notaste que não fui
encoberto na sombra
de teus quadros
olhando-os & andando
a galeria pelo avesso
velha casa dos exilados
onde nada chega ao fim
lupan é virtual & veloz guia
dentes heavy metal
assobia ao invés de latir
bebemos muito ali
não mata
esvazio meu copo ainda
a pele revestida de musgo
tão suave quanto um sapato
movediça abre-se em feridas
calos suores
por vezes respira
poros fermentados desatam a falar
tamanha transparência das coisas
drogas sexo tv
teus quadros prometem afrontar a vida
agitá-la numa guerra interior
agrilhoados & vagantes
exaustos horas a fio
acostamos ao redor das mesas
fortes bafios de urina
bar do parque
putas desfilam sobre cavalos
a realidade vacila
sob a chuva
consumida de vigílias
& silêncio
[lambei lambei o sal
até que tudo apodreça]
táxi dos loucos
não é hamlet segurando um livro
mas o volante de um fusca
a toda pela cidade
hamlet caído no destino de taxista
como quem cai do cavalo
david hochney
dois homens deitados
na mesma cama
dois homens mergulhados
lado a lado na piscina
três pães num prato
algumas maçãs sobre a toalha
girassóis ou antúrios
duas alcachofras
dois cães à espreita da caça
amores raros
a idade viril
ela: um homem
como talvez já não exista
desenclausurada/ambulante
ser – setembro fundindo
orvalhos – senta-
se escuta & contempla
o som da página/pétala
aberta pra todos os lados
carne vertiginosa
que meus olhos lavram
escarram escarnecem
vozes malignas de anjos
à sua glória
[ney ferraz paiva - poemas do livro inédito Val-de-Cães]