JORGE HENRIQUE BASTOS
Jorge Henrique Bastos nasceu em 1964, Belém do Pará, Brasil. Em 1985 passou a viver em São Paulo, ligado ao ramo editorial, em seguida o Rio de Janeiro.
Mudou-se para Lisboa em 1989, onde viveu desde então. Em Portugal continuou a trabalhar no meio editorial, começando a colaborar em suplementos culturais do Diário de Lisboa e o Independente. Em 1994 organizou o livro A Criação do Mundo Segundo os Índios Ianomami para a Editora Hiena, além de dirigir uma coleção de ensaios para a editora Pergaminho, onde publicou Paul Valéry, Mathew Arnold e Alexander Blok. Traduziu René Char, Yves Bonnefoy e Ezra Pound. Viveu dezesseis anos na Europa, regressando ao Brasil em 2006. Atualmente trabalha na Martins Editora, São Paulo.
POESIA SEMPRE – Ano 17 – Número 34. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional – Ministério da Cultura, 2010. 228 p. 18x26 cm. ilus. Editor Marco Lucchesi. Destaque para a Poesia Híndi contemporânea.
Hemorragia
Estancas
perante o massacre diário do sol
sobre a planta,
a cabeça desorbitada,
o circuito contínuo da teia venosa.
O cenário se arma
— órgãos esfacelados, o sangue como uma pasta,
membros jazendo ao lado do coração ainda vivo
e a pupila, à procura de algo para ver, fixando-se no teu olho.
Ficaste refém daquele instante,
encarcerado nas grades
do olhar que descobria a solidão
na hora de nossa morte.
E hoje
não há como drenar as lágrimas,
és uma estátua
diante da natureza morta.
O raio massacra as flores no vaso
e a clorofila derrama sua vida de luz.
A hemorragia continua a vazar de ti.
Trégua
Era no suposto tempo das urzes
em que repetias a descida
e os olhos caíam sobre os telhados
mergulhando na ponta dos guindastes.
Tréguas estelares
coarctam as luzes
e a noite desastra
o seu clamor.
No escamar hipnótico
do rio lá ao fundo
submergem os peixes da angústia,
feixes de sol flecham
a água que embebeda a partida
e rasam o lábio proferido
na suspensão da pergunta
— onde encontrar a remissão
para consentir a dor?
Entre substância e fenômeno
estilhaçam-se à tua frente
almas e corpos,
eras e horas
criam limo no fundo do tempo.
Nada será revelado
tudo é estrangeiro, tudo muda
mas tudo é o mesmo.
O olhar se perde
no cardume de letras
inundando o alfabeto
buracos sob os rostos
e a renúncia irradiada
do passado centrífugo.
Abarcas então
a palavra escassa
o corte cerce
o sangue lasso
e a trégua finda.
Estrelas maníacas
tremem agora por trás de ti.
A sentença de Anaximandro
Rio nunca acaba
pedra não fala
tempo jamais cessa
e o lugar queimando pleno dentro de nós
O fogo lavra na memória das noites
a água abafa o sussurro das tardes
e o lugar entrando fundo dentro de nós
A vida devora a fome
a terra destrói sua agrimensura
a herança é a hemorragia que golfa sempre
e o lugar gritando louco dentro de nós
Dir-se-á que descobriste
como pertencer a uma terra
uma casa
uma cama
um corpo
que se abre todo para ti
e o lugar se funde inteiro dentro de nós.
BABEL Revista de Poesia, Ano 1 - Número 2 - Janeiro a
Dezembro de 2003. Editor Ademir Demarchi. Santos,
São Paulo. ISBN No. 1528-4005
Ex. biblioteca de Antonio Miranda
TRAZES UMA FLORESTS DENTRO DE TI
Aguardas o encontro colérico das águas
e inauguras a viagem,
a vaga do verbo eleito
trama a sua rota,
ecoa na explosão que arrasta ao olhar.
O barco transportando terror
atravessa o delta esquecido da língua,
ventos póstumos escavam o fóssil
da voz longínqua a murmurar ainda.
Crescem urzes na linguagem
que abandonaste,
sorves a clorofila da palavra tempo
e inoculas em ti mesmo
o veneno.
Escoa
a maré que ajudaste a gerar
mas nenhum porto aceita a tua âncora.
Inflama
o pus que recebeste com dádiva
na voragem da manhã coagulada.
Trazes uma floresta dentro de ti
a tremer alucinada,
plantando estátuas de pânico
sobre o charco onde procuras teus ossos
e o silêncio cumpre o seu exílio.
Abres uma clareira no poema,
o abismo.
*
Página ampliada em republicada em fevereiro de 2024
Página publicada em fevereiro de 2018
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