autorretrato
ISMAEL NERY
Nasceu no dia 9 de outubro de 1900 em Belém do Pará. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1909 e frequenta a Escola Nacional de Belas Artes a partir de 1917. Casou-se com Adalgisa Nery em 1922. Elabora, a partir de 1925, um sistema filosófico denominado por Murilo Mendes de Essencialismo, baseado na abstração do tempo e do espaço, na seleção e cultivo dos elementos essenciais da natureza, atraindo os amigos para discussões em sua casa na rua São Clemente, entre eles Mário Pedrosa, Guignard e Murilo Mendes. Sua carreira nas artes plásticas, com influências do modernismo brasileiro e do surrealismo, começa com uma exposição em Belém, em 1929 e se consagra sobretudo a partir da exposição em Nova Iorque, em 1930, com Tarsila do Amaral, Guignard, Anita Malfati, entre outros. Contrai tuberculose e muda-se para a região serrana de Petróplois, mas regressa ao Rio onde vem a morrer em 193em antes de completar 34 anos. Foi um católico convicto.
Também foi poeta e o amigo Murilo Mendes escreveu: "A vida de Ismael Nery é o maior monumento de sua poesia. Essa vida complexa, tumultuosa e matemática, foi uma constante afirmação de poesia. Para Ismael a poesia não consiste, em última análise, no cultivo dos "estados da alma", nem na contemplação das formas exteriores, nem em divagações abstratas: é a antecipação de um estado sobrenatural que o homem só atinge depois de passar por todas as experiências da sensibilidade e da inteligência".
SAUDAÇÃO A ISMAEL NERY
Acima dos cubos verdes e das esferas azuis
Um Ente magnético sopra o espírito da vida.
Depois de fixar os contornos dos corpos
transpõe a região que nasceu sob o signo do amor
e reúne num abraço as partes desconhecidas do mundo.
Apelo dos ritmos movendo as figuras humanas.
Solicitação das matérias do sonho, espírito que não nunca descansa.
Ele pensa desligado do tempo,
as formas futuras dormem nos seus olhos.
Recebe diretamente do Espírito
a visão instantânea das coisas, ó vertigem!
penetra o sentido das ideias, das cores, a totalidade da Criação,
olho do mundo,
zona livre de corrupção, música que não para nunca,
forma e transparência.
(1930)
Leila Maria Fonseca Barbosa
Marisa Timponi Pereira Rodrigues
Ismael Nery e Murilo Mendes: reflexos.
Juiz de Fora: UFJF / MAMM, 2009. 216 p. ilus. color.
ISBN 978-85-62136-00-9
POEMA DE ISMAEL NERY A UMA MULHER
(1933) escrito originalmente em francês e traduzido por Murilo Mendes
Acabaram-se os tempos
Morreram as árvores e os homens.
Destruíram-se as casas.
Submergiram-se as montanhas.
Depois o mar desapareceu.
O mundo transformou-se numa enorme planície
Onde só existia areia e uma tristeza infinita.
Olhando a cólera de um Deus ofendido
E encontrou nossos dois corpos fortemente entrelaçados
Que a raiva do Senhor não quis destruir
Para a eterna lembrança do maior amor.
Eu
(1933)
Eu sou a tangência de duas formas opostas e justapostas
Eu sou o que não existe entre o que existe.
Eu sou tudo sem ser coisa alguma.
Eu sou o amor entre os esposos.
Eu sou o marido e a mulher.
Eu sou a unidade infinita.
Eu sou um deus com princípio.
Eu sou poeta!
Eu tenho raiva de ter nascido eu.
Mas eu só gosto de mim e de quem gosta de mim.
O mundo sem mim acabaria inútil.
Eu sou o sucessor do poeta Jesus Cristo
Encarregado dos sentidos do universo.
Eu sou o poeta Ismael Nery
Que às vezes não gosta de si.
Eu sou o profeta anônimo.
Eu sou os olhos dos cegos
Eu sou o ouvido dos surdos.
Eu sou a língua dos mudos.
Eu sou o profeta desconhecido, cego, surdo e mudo
Quase como todo mundo.
POEMAS PRÉ-ESSENCIALISTAS
Confissão de Poeta
(1933)
Eu tenho um ciúme terrível da minha sogra e do meu genro
E uma saudade mortal da minha esposa falecida.
Eu queria ter sido meu pai ou ser agora a minha nora.
Ou ter morrido como meu irmão...
No instante em que nasci.
Poema
(1932)
Deus criou duas almas.
Deu uma a Adão, outra a Eva.
Deu também a Adão e Eva
O poder de criar corpos
Para herdarem as almas que Ele lhes deu.
Vontade de Quem?
(1933) Réplica a um poema de Murilo Mendes
O enterro do menino rico
Encontrou com o enterro do menino pobre
Na porta do cemitério.
O pai do menino pobre
Pensa que o filho morreu por falta de recursos.
O pai do menino rico
Não sabe a que atribuir a morte de seu filho.
Inércia
(1932)
O poeta quer se locomover
Para que bonde, navio, avião ou zepelim
Se já te encontrei e estás comigo?!
Para que,
Se tu és para mim o universo inteiro?!
Para que,
Se estamos junto da cabeça aos pés?!
TEXT IN ENGLISH
ORAÇÃO DE I.N.
Meu Deus, para que pusestes tantas almas num só corpo ?
Neste corpo neutro que não representa nada do que sou,
neste corpo que não me permite ser anjo nem demónio,
neste corpo que gasta todas as minhas forças
para tentar viver sem ridículo tudo que sou.
Já estou cansado de tantas transformações inúteis.
Não tenho sido na vida senão um grande ator
sem vocação, ator desconhecido, sem palco, sem cenários
e sem palmas.
Não vedes, meu Deus, que assim me torno às vezes
irreconhecível à minha própria mulher e a meus filhos,
a meus raros amigos e a mim mesmo ?
O' Deus estranho e misterioso, que só agora compreendo!
Dai-me, como vós tendes, o poder de criar corpos para as
minhas almas
ou levai-me deste mundo, que já estou exausto.
Eu que fui feito à vossa imagem e semelhança.
Amem!
PRAYER OF I. N.
MY God, why hast Thou put so many souls in one body ?
In this indifferent body that represents nothing of what I am,
in this body which permits me to be neither angel nor demon, in this body that squanders all my powers
in striving to live without ridicule all that I am.
I am weary now of playing so many futile parts.
All my life I have been nothing but a great actor without
a calling,
an unknown actor without stage, without scenery, and
without applause.
Dost Thou not see, my God, that I am therefore sometimes
unrecognizable
to my own wife and to my children,
to my few friends and to myself ?
Strange and mysterious God, whom only now I understand, give me, if Thou wilt, the power to create bodies for my souls,
or take me from this world, seeing that my strength is spent;
I who was made in Thine image and in Thy likeness.
Amen!
Translator: Dudley Poore
Página publicada em julho de 2010; ampliada em outubro de 2016
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