AGE DE CARVALHO
Nasceu em Belém do Pará, em 1958. Concluiu seus estudos primário e ginasial no Colégio Moderno, em Belém, e se formou em Arquitetura pela Universidade Federal do Pará. Editou a página de poesia Grápho nos jornais paraenses A Província do Pará e O Liberal entre 1983-85, atuando também como tradutor. Passa o ano de 1984 em Innsbruck, Áustria. No final de 1986 retorna à Europa para se fixar em Viena. De 1991 a 2000 vive em Munique, Alemanha, e a partir deste ano muda-se para Viena, onde se encontra atualmente. Como designer gráfico atua em várias revistas austríacas e alemãs na função de diretor de arte.
Aprendiz dos mestres da poesia universal, Age bebeu nas fontes de Paul Celán – com quem aprendeu a economia da forma –, de Ezra Pound (cultor de fragmentos), de Mário Faustino (com quem percebeu que um poema não deve ser falante demais), do Drummond dos “laços de família”, de Ferreira Gullar (de corporal luta) e de Max Martins, amigo, parceiro de Risco subscrito, e, por que não dizer, mestre. Age de Carvalho tornou universais os quintais e as ruas de Belém. Atitude não muito fácil par a insularidade vivida por aquela região brasileira. Isso o faz, nestes poemas, traçar sua biografia. Uma biografia poética em que o eu-lírico esconde-se atrás de uma hermética máscara de palavras.
Paulo Nunes
Bibliografia: Arquitetura dos ossos, Editora Falângola/Semec, Belém, 1980; A fala entre parêntesis, junto com Max Martins, Edições Grápho/Grafisa/Semec, Belém, 1982; Arena, areia, Grafisa/Edições Grápho, Belém, 1986; Ror: 1980-1990, poesia reunida e o livro inédito Pedra-um, Editora Duas Cidades, Coleção Claro Enigma, SP, 1990; Móbiles, junto com Augusto Massi, 7 Letras, Rio, 1998; Caveira 41, Cosac & Naify/7 Letras, São Paulo, 2003; Seleta, antologia poética, Editora Paka-Tatu, Belém, 2004. No prelo, antologia poética a ser publicada na Alemanha, traduzida por Curt Meyer-Clason.
Página construída por Salomão Sousa, publicada em agosto 2007, ampliada e republicada em junho de 2009
TEXTOS EM PORTUGUÊS / TEXTOS EN ESPAÑOL
Aqui, em meu país
irremediavelmente nordestino e míserável,
à luz elétrica de meu século,
sob todos os alfabetos do medo e da fome;
aqui,
entre o homem e o homem
(como dois sistemas totais
num universo de águas inacabado),
aqui vivo.
De Arquitetura dos ossos (1980)
BOCA
a minha e a tua:
o ímã das línguas lança promessas,
letra-sobre-letra
À vera,
a tempestuosa mão da rasura
subjaz
negra no plural dos pêlos
à procura do selo mais profundo,
funda.
De Arena, areia (1986)
FAZER COM, FAZER DE
Estar, entre
estrelas e pedras,
interrompido
Resto de
ervas, tempo, entre dentes
detém-se
a palavra-refém,
réstia.
De Pedra-Um (1989)
SANGUE-SHOW
Esse o tempo—
em-sempre da serpente,
seu recobrado sentido
circular nas glebas
do sangue.
Chão,
subcutáneo, chão—
aqui se apaga
a veia vida/obra,
aqui a cobra
(intra-
vírgula
venenosa) insinua
entre ramas brilhantes
seu eterno s:
aqui, é-se.
Revista Inimigo Rumor, 7 (1999)
O CÍRCULO na areia, o
que no
grão de
grande
há,
sim sens, não tens
a fala sem sentido
que é
isto: menos que
isto, isso
3
As bananeiras indecentemente alvoroçando suas pernas
amplamente às serpentes de pluma: antros
do inferno: as formações cruéis, passando: nuvens
É que vens nu, e as nuvens te amoralçam
assanham ecos, sonham o silêncio atrás dos muros
Mais alto a fala do sol de ensina às pedras
te insinua às sombras (que estão nos antros
— fendas noturnas)
Claro-escuro
de linguagens subterrâneas, ânus
para a fala de dois espíritos:
Escritura,
filtro de luz, as marcas inscritas no crânio
da palavra, verão de alfabetos esquecidos,
sílabas, louras mitologias manchadas no muro
Que existe/insiste escuro para manhãs, amanhos, aventuras:
A Ilha do Tesouro, a mala do defunto, o escaravelho
— a fala
se amofina estéril e lisa, espuma
ao gozo de neblinas
Veio,
veio Áries, as forças,
a espiral,
do cifrado chifre e um número
de ouro, Quatro, herdado
de ti,
Um-pai,
pastoreando agora o carneiro
dourado para fora
do quarto,
perdida a córnea
palavra, pós-operatória,
que, soprada,
talvez, talvez
levasse
a ti.
Corcovado
à Nelci Frangipani
Uma última vez
antes de subirmos,
braços abertos sobre
a flora brava, aqui
em baixo, onde colho
a despedida –
o tempo
só de abraçar
o abricó-da-praia,
meu amigo,
enquanto tu, trezentas
e terrena, davas
comida aos gatos.
POEMA COMPLEMENTAR SOBRE O RIO
A José Maria de Vilar Ferreira
O rio consagrado: a vazante
lembrança que escoa em maré
baixa e retorna — água escura
— na preamar
O rio sagrado: invólucro do céu
e margem, e duas margens
dos caboclos amantes. O rio
passado: cismando na crisma, paresque
dumas lembranças que trabalham a solidão:
o paralelo das margens, uma igara partida,
as águas sujas que sempre voltam.
A CADELA
Caminhava grave pela casa
a cadela.
A cabeça quieta era sua altivez
quadrúpede no centro da cozinha.
Caminhava. Os olhos, costelas,
o mar de ossos, o coração
pardo e lento – caminhava.
A manhã debruçava-se pela janela: cristais no pó,
o púcaro da china, horas de louça
batendo nas palavras na sala da casa.
A cadela caminhava, dura,
secular.
(Domingo dormia
prolongado como um funcionário feriado).
Vivera demais. Descansava à sombra,
perto do quarador.
Sonhava farta, invisível,
a cadela azul,
nua
(o sexo velho e molhado,
um caranguejo arcaico sob o rabo).
Dormia, vazia.
Outubro doía longe, na Ásia,
quando a Fuluca anunciou: "A Catucha morreu".
De
ROR (1980-1990)
São Paulo: Claro Enigma, 1990
IN ABSENTIA
E: ainda uma chance —
uma pedra se refolha
para o repouso,
o instante é
sempre presença
Ror de erros,
recolho repetidos
o que ainda me pertence
NISSO
que ascendeu
se revelou
e esqueceu
ponhamos uma pedra
SUMA
Quantas vezes
ainda por repetir?
Estão comigo, todas
de segunda mão,
não classificadas
ó anel
círculo mancha ervas
sombra relva irmã
estrela erro tumba
por companhia
pedra pedra pedra
A JOÃO CABRAL DE MELO NETO
só dizer
o que sei
e duvido saber, o sal
pela mão
do rio-sem
resposta —
um luxuoso dizer, de vagar sem onda
e vaga, fluvial, não aliterado;
um dizer repetido na diferença,
barrento, semi-dito, em Não fechado;
ou o não-dito, rios sem discurso,
nome por dizer ou dizer empedrado;
dizer sim o raro e claro do poema,
dizer difícil e atravessado, com margem
de erro
CARVALHO, Agê de. Ainda: em viagem. Belém, Pará: ed. Ufpa, 2015. 104 p. 12x19 cm. Capa dura e sobrecapa. ISBN 978-85-147-0523-6 Ex. bibl. Antonio Miranda
"Em resumidas contas, a poesia descarnada que aqui encontramos põe em prática uma espécie de saber negativo do poético, enquanto ação paradoxal da palavra, cujo dizer se alteia quanto mais arruína os significados correntes e quanto maior é o seu poder de silêncio. BENEDITO NUNES, na Folha de S. Paulo, 18.8.1990
EU, INTIMO-ME
a reconhecer-
(em ti, contigo
em viagem — nós,
dois faróis na estrada
farejando a escuridão luxuosa,
abolido tempoespaço
à visão da grande nebulosa:
tu, era eu-todo-estrelado,
o céu, espelho)
-me em
mim-mesmo.
E BRILHA: estar
dentro dela
e poder vê-la — a Via Láctea,
A trilha ao sem-fim
de mim, estrela
Vista daquele píer de Salinas,
o céu-juventude
álcoois, fulgurações
na noite admirada,
comigo
ainda, em viagem.
Vozes
De olhos fechados contra
o sol,
a alma enfim à vista, todos
os pontos luminosos.
Chegaram. O motor
desligado,
bater de portas no aberto,
vozes, uma
a uma,
a se elevarem do esplendor
doméstico rumo aos céus,
subidas, as altas vozes
sobre a casa, desengatadas
da antena brilhante-astra
a ganhar o silêncio,
essa massa, ave, bater de asas,
crepitar de madeira queimada,
bosque de vozes, esfinada
voz que
silva da mata,
risco de fósforo
dentro do dia
rumor de estrelas
latido no nada
salto de rã naquele container
sem-som dágua
ave, pio de jato, assobio
que passou, passará, retro-
sônico, sobre
o barro da estrada,
a voz no vento,
dentro do
processo,
nos cabelos, passando.
De olhos fechados
contra o sol,
todos os pontos
luminosos.
A TI
peço o poema
de hoje,
o vício da beleza —
tua verdade, tua
minha indecisa frase indecifrável,
tua verdade, que alto ergueste,
carneiro dourado,
que alto, mais alto
ergueste em oferenda,
estrela, estrela
perto do sangue,
faz minha, hoje
seta atravessando a treva
==============================================
TEXTOS EN ESPAÑOL
Tradução de Adolfo Montejo Navas*
AGE DE CARVALHO
(Belém do Para, 1958) Su poesía, extramuros de la lírica brasileña, adquiere su importancia por la fuerza y originalidad verbal y de sentidos (de investigación y construcción lingüística, de «penetración», según Julio Castañon Guimaráes), en la medida en que sintoniza con las abisalidades poéticas de Paúl Celan y de Ferreira Gullar, en un conquistado espacio propio. La palabra poliédrica de su poesía tím-
brica es referencia de radicalidad innovadora. Sus últimos poemas sin libro en-
fatizan estas características hacia una mayor síntesis.
OBRA POÉTICA: Arquitetura dos ossos, 1980, y A fala entre paréntesis,
1982 (con Max Martins); Arena, areia, 1986; Pedra-Um, incluido en Ror, 1990.
Aquí, en mi país
irremediablemente nordeste* y miserable
a la luz eléctrica de mi siglo,
bajo todos los alfabetos del miedo y del h
aquí,
entre el hombre y el hombre
(como dos sistemas totales
en un universo de aguas inacabado)
aquí vivo.
De Arquitetura dos ossos (1980)
BOCA
la mía y la tuya:
el imán de las lenguas lanza promesas,
letra-sobre-letra
A la vera
la tempestuosa mano de la rasura
subyace
negra en el plural de los pelos,
a la búsqueda del sello más profundo,
honda.
De Arena, areia (1986)
* En el original nordestino, referencia geográfica y social al mismo tiempo noreste de Brasil que sufre sequía y duras condiciones de vida.
HACER CON, HACER DE
Estar, entre
estrellas y piedras,
interrumpido
Resto de
hierbas, tiempo, entre dientes
se detiene
la palabra-rehén
ristra.
De Pedra-Um (1989)
SANGRE-SHOW
Ése el tiempo—
en-siempre de la serpiente,
su recobrado sentido
circular en la glebas
de la sangre.
Suelo,
subcutáneo, suelo-
aquí se apaga
la vena vida/obra,
aquí la cobra
(intra-
coma
venenosa) insinúa
entre ramas brillantes
su eterno s:
aquí, se-es.
Revista Inimigo Rumor, 7 (1999)
*De Correspondencia celeste. Nueva poesía brasileña (1960-2000). Introducción, traducción y notas de Adolfo Montejo Navas. Madrid: Árdora Ediciones, 2001 – Obra publicada com o apoio do Ministério da Cultura do Brasil.
*Nota: o tradutor Adolfo Montejo Navas é amigo comum nosso com Wagner Barja, e o convidamos a participar da exposição OBRANOME 2 no Museu Nacional de Brasília, durante a I Bienal Internacional de Poesia de Brasília 2009. Montejo Navas prometeu-nos suas traduções ao castelhano e só na Espanha, em viagem, é que conseguimos os originais que estamos divulgando parcialmente no nosso Portal de Poesia Ibeoramericana, com os agradecimentos.
DIMENSÃO. Revista Internacional de Poesia. Ano XV. No. 24. Editor Guido Bilharino, Uberaba, MG: 1995. 150 p.
Ex. biblioteca de Antonio Miranda
FOGUEIRAS de novembro, névoa
Olivas negras, olhos
negros de Ali, mercado negro:
a folha mais escura da estação
negocia com folhalguma
um verdor
usado de dinheiros, folhal
de preço & gente no Naschumarkt
*
Quatro degraus
abaixo, quatro — o Café Amarcord
óleos outros, favores de foda
os fornos
Der Teufel spricht
Deutsch à urina
inscrito na alma
nos lavatórios de Forneus
sobre o jornal japonês
na navalha útil de Samuel Pepys
(diários 1660-1669) citada no cardápio —
anotações subterrâneas à sombra
para um tempo cozinheiro
Fogueiras e névoa
Página ampliada em junho de 2024
Página ampliada e republiada em janeiro e em junho de 2009. ampliada e republicada em dezembro de 2017.
|