esta tarde vi llover
sonhar a portas fechadas
perambular por um corpo imaginário
sem deixar vestígios
assustar-se com a própria sombra
no escuro
chorar no escuro
morrer de medo do único rosto
no espelho
polir o espelho
acordar os pássaros
antecipar a aurora
sofrer da mesma vida
as gramáticas explicam
[mas não convencem]
por que a solidão é
um substantivo abstrato
trapézio
a manhã nasce num gesto escuro
quando a espera se revela
inútil como um útero
que não sangra
o corpo incauto põe-se
de tocaia: aguarda outra deixa
para se jogar
e ignora o calafrio
esse arrepio entre o umbigo e os seios
essa dor terebrante no monte de vênus
anunciam
todo amor dilacera
mamuskas
a trisavó cresceu com a mania de recolher nuncas
a bisavó passou a vida colecionando nãos
a avó, entre rezas, reunia quimeras
a mãe empilhava lamúrias
ela habituou-se aos muros
a filha junta janelas
a neta, pássaros
anúncio
a minha casa guarda silêncios
ausências e soluços
em cada canto meus absurdos
naquela janela um par de asas
bem ali a ração dos
cachorros e a solitude
sob os tapetes as cicatrizes
sobre a pia as máscaras
trancado a chave
o armário de incêndios
atrás da porta
a minha sede
no terraço uma rede
de renúncias
no jardim entre os antúrios
um antro de amarguras
no alpendre
o breu o breu o breu
quem comprar minha casa
leva minha alma dentro
circulação & urbanismo
o andar bisonho denuncia
o sapato apertado:
o defunto era menor
o vento levanta a saia e
a sombrinha de dez real
perde prumo e serventia
veias arrebentadas do
lado esquerdo da coxa esquerda
atestam certo desencanto
o carro último tipo freia na poça
e a moça impassível percebe-se
ensopada até a alma
o motorista acelera e vai:
com o sorriso que têm as pessoas
que deram sorte na vida