Foto: romerioromulo.wordpress.com
ROMÉRIO RÔMULO
Nasceu em Felixlândia, Minas Gerais. Professor de Economia Política da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP. Prefaciou a primeira edição das poesias eróticas de Bernardo Guimarães, O Elixir do Pajé (Dubolso, 1988), mais de cem anos depois da edição original. Até então eram clandestinas.
Publicou vários livros de poesia, entre eles Bené para Flauta e Murilo (1990), a caixa Tempo Quando (4 livros em 2 volumes, 1996) e o Matéria Bruta (São Paulo: Altana, 2006), de onde extraímos os poemas seguintes.
É possível falar de um hermetismo lúcido, de um enredo que se enreda em palavras que se espelham pelo avesso... discurso em curso que diz, mas não se revela senão por despistamentos... Assim é a poesia de R.R. como o próprio poeta se anuncia:
é texto de palavra atada e fugidia.
rasgo de alma, fosse chuva e sol.
antípoda gerado eixos: fome, alimento.
alma súcuba de traços: vento e chumbo.
tiro borracha e madeira, certeira testa.
O solto, o desastre, o aço preso do corpo,
em pétalas e mãos, estardalhaço.
(o poema)
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RÔMULO, Romério. Matéria Bruta. São Paulo: Altana, 2006. 136 p ilus. 15,5x22 cm. “ Romério Rômulo “ Ex. bibl. Antonio Miranda
o tumulto do corpo pode ausências.
calar tem por demais, arrefecido
instante da manhã chamado vento.
uns mistérios, dizer o mais que sono
sem a palavra livre revelada.
quando uma carne concebe, intimamente,
uma outra carne rasura seu instante
mais breve de pedra. e saber
aquilatar é tudo, face o tempo.
que outros mais dizer irão, somente,
sabedorias se nem cabe a rouca
lamúria que no lábio sempre espera
pelo espaço de só ser lamúria.
(o corpo pode ausências)
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sou, por meus inteiros, vários.
minhas frações se fazem de repente.
o olho, de inteiro e faces,
disseca os cacos da manhã (lavada).
múltipla mão, da luz, me regurgita
uma estranha verdade, um denso espanto.
(minha doce face fuzilada)
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uma poesia deserta, texto de pedra e secura.
poesia de ferreiro: metal e martelo.
uma poesia brasa candente. cozer tudo,
ato do verso, dure tanto ou nada.
(abertura)
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o vento do sertão que ainda me sopra
me rasga em ventania o caldo e o corpo
qual um tijolo tange, em pedra nua,
cada parede sem cal, de cada boca.
o meu pavor é duplo, o meu horror,
quádruplo.
no triplo do meu topo é minha boca.
o pálido sertão que ainda me lambe
sabe o horror que cabe em cada corpo.
são muitos os vieses, quando
matizes cimitarram quadro
que sai do olho, encanto diferente.
*****
“a carne é reticente; a noite cega.” (r.r.)
ATO – REVISTA DE LITERATURA. NO. 6. Belo Horizonte: Gráfica e Editora O Lutador, janeiro de 2009. Editores: Camilo Lara, Rogério Barbosa da Silva e Wagner Moreira. 21,5 X 52 cm. 52 p.
Ex. biblioteca de Antonio Miranda
rio acima duas canções se fazem.
alargado meu peito desfalece.
que arcos hão de vir, sombriamente,
falar, cerrado puro, do meu lastro.
e se os risonhos da manhã me deceparem?
acaso sou poesia ou sou manhã?
acaso uma nascente é tão nascente
que só se faça romper pela clausura?
vou de saberes, que saberes estes
são uivos que caminho pelas águas
e águas são de um sólido mais brusco
que desfalecem os ranços já chegados.
cauda selvagem, se me sobra toda
a vida por parir mais que selvagem.
(raso de delírio: o meu cão morto)
quando atrozes instantes te fizeram noite?
quando manhã te nasce do torpor?
é vida, se vivida à fome e frio?
vida assim, se retalhada em noite
te cabe do vazio a só morada
de um tempo que é manhã sobrevivida.
recanto, atroz de instantes tão perdidos
nas vidas regaladas destes olhos,
olhos da fome, doces, extirpados
de um saber ser vida toda noite.
vou, por agora, recorrer da noite.
(quando manhã te nasce)
estar e ser são textos do momento.
há um caudal de tempos intrincados
que se revelam no quadro de um só tempo.
efervescências pisam sobre nós,
num tempo que se sabe renascer,
a cada novo tempo revelado.
dizer-se mais, que o tempo se trabalha
por corpos, vilas, rastros ecumênicos,
vilarejos de trás, menos que tanto,
de se saber o íntimo nascido.
se pouco te disser da noite brusca
do teu relevo em mim todo ele espanto,
chaga, poder, ditongo, dissonância,
escada de relato, alvo de potros
se lábio tens, quebranto, alvéolo meu,
de pura mansidão, latido louco,
sobre o meu corpo arrasas mansidão.
tão tempestade, dizer meu braço teso.
a noite é um mistério solto,
a vaga solidão me é manhã.
quando cabido, sou homem, sou bêbada,
ave que deserta madrugada
estes saberes breves são ausências
que a solidão revela no meu rosto.
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Página ampliada e republicada em março de 2024
Página publicada em março de 2008 |