RITA ESPESCHIT
Rita de Cássia Espeschit Braga nasceu em Belo Horizonte e seu primeiro livro de poesias foi Gardênias & Tarântulas. Ganhou o prêmio Cidade de Belo Horizonte de Poesia em 1987. Autora de textos infanto-juvenis, já ganhou o Prêmio Jabuti. Vive em Edmonton, Canada.
Os poemas a seguir foram extraídos da antologia A POESIA MINEIRA NO SÉCULO XX, org., introd. e notas de Assis Brasil. Rio de Janeiro: Imago Ed. 1998.
MATURAÇÃO
Cresci quase em silêncio.
Apenas os pulmões enchendo
e murchando ruidosamente.
Fora isso não incomodei ninguém.
O mundo explodia inaudível,
temporal nas têmporas.
Havia também meus pais.
Me lembro deles como
de um filme na TV.
Às vezes os assistia
entre pipocas, quadrinhos
e outras ocupações sonolentas.
Entre os primeiros namorados.
As segundas intenções.
As terceiras dimensões.
Me lembro de meus pais.l
De como doía seu idioma
nosso silêncio compartilhado.
(Par-ou-ímpar, 1997
MENON
Me lembro, enfim,
do começo do mundo.
A estrutura das estrelas
a álgebra das algas:
o saber é a memória
do que não conheci.
A idéia das coisas
se torna visível.
Implode a pedra abstrata.
A alma condensada se prepara
para o próximo big-bang.
Doem as dores do parto.
Da ignorância do homem
nasce o sabor dos deuses.
(Par-ou-ímpar, 1997
ESPESCHIT, Rita. Lua gorda. Ilustrações de Sebastião Nunes. Sabará, MG: Ed. Dubolsinho, 2012. 112 p. ilus. 14.20 cm. ISBN 978-85-7109-041-2 Col. A.M.
SÍNDROME DE ABSTINÊNCIA
Quando você me deixou, meu bem
Fiquei melodramática e pensei:
"Nunca mais!", depois inundei
De lágrimas os diques domésticos
Tomei ansiolíticos e analgésicos.
Tive cólicas renais, meu amor
Acessos de gripes semanais
Contraí febres de toda cor:
Fiquei verde, amarela, lilás
Me suicidei em câmaras de gás.
Hoje estou mais calma.
Abri um tratado de fisiologia
Na página 1.993 e descobri
Que com + algumas extrassístoles
E crises de asma alérgica
Estarei definitivamente curada
Pronta para outra
Pronta para outro.
PRETÉRITO COMPOSTO
Do meu amor mais atento
Trago lembranças amenas
E remendos amarelos.
Tenho passado roupa, cola e tempo
Enquanto espero meu namorado
Virar passado.
Seu bigode virar remoto
Seu beijo virar segredo.
Tenho passado saudades
Mansas e imensas
Tenho passado saudades
Sem hora marcada.
O AMOR
O amor é cego
Surdo, mudo
Paralítico e barrigudo.
Extraído de
POESIA SEMPRE – Ano 5 – Número 8 – Junho 1997. Revista semestral de poesia. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Ministério da Cultura, Departamento Nacional de Livro. Editor Geral: Antonio Carlos Secchin. Ex. bibl. Antonio Miranda.
Terra azul
Pasta na superfície das praças
O bando solitário e bípede.
O singelo pascer dos homens
espécie delicada e estúpida
que se perdeu no planeta.
A Terra é azul
e insuportavelmente
distante.
Inverno
A Terra degolada pelos deuses
em dias de festim:
raios da cólera maiúscula
decepam a memória do mundo.
Árvores se curvam
e os rios quedam-se.
Dia dos deuses
sacudirem o pó dos séculos.
O olhar pluviométrico do deus
se repartiu em dez?
Naquele tempo, havia gigantes
sobre a Terra. Afogaram-se.
Hoje, a amnésia visita nossa morada
e sussurra doce os mistérios
do tempo presente.
Estamos surdos e esperamos
a pequena nave louca em que viajaremos
dilúvio afora.
Pescaria
O poema em vão jaz no mar de Platão.
Dois mil anos em ócio de oceano.
Heidegger, o pescador de ostras, erra a mira
e arpoa o poema em extinção.
O barco iça a carcaça dos versos.
O pescador, convertido, se ajoelha
ausculta, faz primeiros e segundos socorros
decreta: pagãos! respira ainda a poesia!
Morre a filosofia na era do instante clip
Dois mil anos enfim na lâmpada de Aladim.
Página publicada em janeiro de 2009, AMPLIADA e republicada em maio de 2013. Ampliada em março de 2018
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