RENATO SUTTANA
Renato Sultana é natural de Barroso-MG. Mestre em Letras pela PUC-MG e doutor pela UNESP- Assis, é atualmente professor da Universidade federal da Grande Dourados. Imprimiu seu primeiro livro em 2002, sob o título de Visita do fantasma na noite, em edição particular. Em 2005 publicou o ensaio João Cabral de Melo Neto: o poeta e a voz da modernidade, fruto de sua pesquisa de doutoramento, e o livro de poemas Bichos, com ilustrações e prefácio do escritor e artista plástico português Nicolau Saião. Além desses, é autor dos livros Fim do verão (editora Virtual Books, 2009), Uma poética do deslimite: poema e imagem na obra de Manoel de Barros (Editora da UFGD, 2009) e Qualquer um (Virtual Books, 2010). Na internei, mantém o portal O Arquivo de Renato Sultana, que disponibiliza para acesso alguns livros de sua autoria, bem como trabalhos (originais e traduções) de outros autores. Pelas Edições Nephelibata tem também as traduções: Um cavaleiro no céu de Ambrose Bierce e A música de Erich Zann de H. P. Lovecraft.
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De
SUTTANA, Renato. Outros bichos. Capa: desenho de Alberto Lacer. São Pedro de
Alcântara, SC: Edições Nephelibata, 2011. 99 p. Ex. 51 de uma edição de 60. Formato
23x20,5 cm.
O CUPIM
a dialética do cupim
tem uma forma
bastante clara:
sua casa se constrói
enquanto a nossa
desaba.
O BOI (I)
Indiferente
aos elogios
o boi
não persegue nenhuma glória.
E é por isso que o dia
(esta tarde de vidro, esta
esmeraldina luz
que se levanta
em forma de colina
à sua frente)
lhe quadra
como luva.
(Nada há que ele não saiba
ou nada
que ele já não conheça
desde o princípio: as
surpresas do sol,
os pensamentos
do vento;
o vento
e algum secreto modo
de transformar-se
em relva
o que é sol, o que foi
noite.) No boi
o tempo se enraíza
profundamente.
E em seu vasto respirar
respira também
e aspira
à eternidade.
O PAVÃO
Não saberias o que dizer
diante de um pavão:
e no entanto a vaidade ali
é apenas
coisa do olho.
O pavão
sabe exatamente o que faz.
E, quando
abre na tarde simples
o seu sistema de cores,
é a teoria da luz
que ele interpreta
à sua própria maneira.
SUTTANA, Renato. Bichos. Apresentação e ilustrações de Nicolau Saião. Guarapuava, PR: edição do autor, 2005. 58 p. ilus. Col. A.M. (EA)
SUTTANA, Renato. Fim do verão. Pará de Minas, MG: Editora Virualbooks, 2009. 114 p. 14x20 cm. ISBN 978-85-60864-94-2 Col. A.M. (EA)
TALVEZ
O ouro de amanhã é talvez,
e certeza dos portos é quem sabe.
A verdade de amanhã,
engastada no fundo das minas —
é uma hipótese a que nos confiamos,
mas que não se confirma no vento.
(Que motivo teria para se confirmar?_
De hoje até amanhã tudo é hipótese —
e o vento, que não se esclarece num mapa.
SUTTANA, Renato. Qualquer um. Pará de Minas, MG: Editora Vritualbooks, 2009. 103 p. 14,5x29,5 cm. 978-85- 7953-203-0 Col. A.M. (EA)
LÁ SE FOI O DIA
Lá se foi o dia
em que eu te queria.
Lá se foi o encanto
que me deste tanto.
Lá se foi no vento
do meu pensamento
a esperança breve
que me deste, leve.
Lá se foi na turva
noite (ou numa curva
da comprida estrada
que levou a nada)
o que se partiu
quando o dia abriu:
o que foi escura
queda de uma altura.
Lá se foi o dia
em que eu te queria.
SUTTANA, Renato. Visita do fantasma na noite. Guarapuava, PR: edição do autor, 2000. 98 p. 16x21,5 cm. Capa: óleo de Holney Mendes.
Nesga
Esta nesga de sombra que eu percorro,
buscando o que não sei nem vou achar,
tem para mím a amplitude de um mar,
de um deserto de areias, onde corro
no encalço de um fantasma, sem lugar
de encontro e saciedade, de um só jorro
de água sonhada; onde me firo e morro
de meu próprio veneno a me tentar
entre o que sei e perco e me refoge,
para diante lançando-se: ontem e hoje
num só deserto, que atravesso e não.
Esta nesga de sombra sou eu mesmo,
a interrogar-me à noite, incerto e a esmo,
entre o cansaço, a sombra e a solidão.
SUTTANA, Renato. Bichos imaginários. Natal, RN: Sol Negro, 2013. 48 p. 13x18,5 cm. Capa com ilustração colada e caderno costurado a mão com linha. Tiragem: 115 exs. Ex. n. 113 na bibl. Antonio Miranda.
A Ninhada
(quase um prefacio)
os ovos frigirão pássaros
os pássaros engolirão as horas
as horas serão pias
um grande ponto de exclamação
dividirá ao meio
a tua confusão.
Os Leões Alados
“Leões alados, sem juba.”
Mário de Sá Carneiro
Sobre a linha dos muros,
vêm pousar, calados,
ásperos e ossudos,
inconfiáveis e duros,
os leões alados.
Como troféus maduros
dos outonos aguados —
com seus silêncios puros
e seus olhos vidrados —
falam de erros futuros.
Nas cercanias do vento,
sobre pátios obscuros,
sobre a pedra e o cimento,
alongam, por um momento,
seus silêncios agudos.
(Quem os vê sobre os muros,
à luz do meio-dia,
tem um pressentimento
e um doido pensamento
de que foi a luz do dia —
e a ânsia de atingimento,
de achar a direção —
que os gerou no vento:
movendo-os aos silêncios
espinhosos e ossudos.)
Por que estão lá, seguros
de si mesmos, pousados
sobre a linha dos muros?
Não há ninguém que o explique,
nem quem o justifique.
Como troféus pontudos
dos outonos lassos —
com seus silêncios curvos
e seus olhares baços —
falam de erros futuros:
pousados, como de pedra,
como de nuvem e vento,
ríspidos e agudos,
intocáveis e lentos,
sobre a linha dos muros.
SUTTANA, Renato. Rapinário. Ilhéus, Bahia: Mondrongo, 2015.
122 p. 13x20 cm. Capra: detalhe da obra de Manoel Almeida de Sousa. Ex. bibl. Salomão Sousa.
PARA TODAS AS PARTES
Para todas as partes sou levado
e por todos os ventos e correntes.
Desço, e sou mar disperso, encapelado
sem memória de pátria e sem parentes.
Meu nome foi erro pronunciado
num labirinto móvel de serpentes:
e, absorto, às cegas, vou de lado a lado,
falso de origens e de antecedentes
Arrastado por ondas, por caprichos,
por lances que aborreço e não domino,
vou a pique, de encontro ao meu destino:
vendo ao longe elevar-se dos seus nichos
os fantasmas da insônia, que me exorta,
que vem bater — pontual — à minha porta.
FALTAM ASAS
Faltam asas aos corvos, faltam ventos
faltam desculpas, faltam pensamentos,
faltam pretextos, faltam situações,
faltam chuvas e nuvens e verões,
faltam mapas e estradas, faltam ares
sobre os quais o negror dos seus azares,
o cinza do seu hálito, o granizo
do seu grito, a efusão do seu aviso
se estendem, verdadeiros, falta um muro,
faltam paisagens para o seu futuro.
Nesta insatisfatória primavera,
em que nada se afirma e nada gera
um desejo qualquer de direção,
de superar a inércia, de ir à ação,
de forçar o limite, ultrapassar,
saltar a linha de só protelar,
de não comparecer ao compromisso
de dar ao gesto uma razão e um viço
que nunca teve (e que jamais terá),
porque a demora é que nos prende lá —
faltam asas aos corvos, faltam ares,
falta o oblívio, o sossego dos pesares,
a justiça do próprio, do indiviso,
da impensada pirueta, do improvisos,
e o esquecimento simples que resolve
o impasse em que o entusiasmo se dissolve,
o desejo se afunda, o impulso esbarra
como vencido pela enorme garra,
pela pressão enorme da preguiça,
que tudo prende — espessa e movediça—,
por uma enorme coisa que não cabe
na tarde neutra, que de nada sabe.
Página publicada em dezembro de 2011. Ampliada e republicada em julho de 2014. Ampliada em abril de 2018
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